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O Pai Nosso e o Perdão (2) – Alguns exemplos

Há situações em que ao perdão se segue um reatar da boa relação que se tinha anteriormente. Há também as situações em que antes do facto ocorrido as pessoas não se conheciam e depois do perdão as coisas voltaram ao seu normal, com as feridas cicatrizadas. Estas seriam as situações desejáveis.

Mas há outras em que, apesar de se ter perdoado, a reconciliação não é possível, o que aparentemente é um contra-senso. Ou, se quiser, só é possível no coração das pessoas mas não entre as partes envolvidas. É sobre isto que me quero debruçar neste artigo. Vou tentar explicar através de exemplos.

O leitor pense neste caso verídico: Umas pessoas assaltam uma casa, espancam a dona, uma senhora de idade, e pegam fogo à casa. A senhora morre. Se houver uma reconciliação, um perdão no coração da família da senhora, já será muito bom. Mas uma reconciliação entre as duas partes, provavelmente nunca haverá, até por impossibilidade material.

Como disse, se houvesse uma reconciliação no coração da família da senhora já seria muito bom porque, em muitos casos, a dor é tão grande que nem isso é possível. Já me foi dado ver na televisão pessoas a quem mataram pessoas de família dizerem que só descansariam quando testemunhassem a execução dos assassinos na cadeira eléctrica. É o caso em que um acto horroroso levou a uma escalada de violência no coração da família das vítimas. Neste caso, pelo menos aparentemente, não houve vontade da família em perdoar.

Outro exemplo de uma difícil reconciliação prática. Duas senhoras num prédio. (Quem diz num prédio, diz numa aldeia ou noutro ambiente fechado.) A Alice está sempre disponível para ceder à Estela, sua vizinha do lado direito, um bocadinho de farinha, uma garrafinha de óleo, um pãozinho. Mas a Estela nunca devolve o cedido. A Alice faz por pensar que a Estela se esquece. Um dia, a Alice precisa de uns ovos numa urgência e a Estela não tem, o que é perfeitamente possível. Só que a Estela, que continua a pedir coisas à Alice, nunca tem nada do que a Alice precisa. Vendo aquilo, o marido da Alice – um bocadinho machista – proíbe-a de voltar a ceder coisas à Estela. A Alice entra em pânico porque já sabe o que é que a espera se não ceder as coisas à Estela. Resolve falar com o pároco, com quem tinha alguma confiança. O pároco também lhe disse que não desse nada, até porque estava a alimentar a exploração da Estela. Então, a Alice assim faz. Resultado: a Estela faz constar no prédio todo que a Alice, uma beata do piorio, é má vizinha, invejosa e soberba. A Alice, não usando dos mesmos meios e não querendo retribuir na mesma moeda, calou-se mas não cedeu à chantagem da Estela. Nesta situação, dificilmente haverá reconciliação. A Alice pode tentar perdoar a Estela no seu coração, embora o facto de a ver todos os dias torne isso mais difícil. Mas não parece provável que as duas vizinhas se venham a reconciliar, a não ser que haja gestos de boa vontade da parte da Estela.

Outra situação é esta. (Tal como as anteriores, uma situação verdadeira.) Cada vez que o António está com o Pedro, o António ofende o Pedro. Mas só quando estão em público. Ao fim de 20 anos, e depois de algumas tentativas de se entenderem, o Pedro perdeu a esperança de qualquer mudança do António e deixou de lhe falar. Nem mesmo «bom dia», «boa tarde». O António também deixou de falar ao Pedro e, portanto, de o ofender. Eis outra situação de reconciliação difícil ou impossível.

O leitor tem aqui três exemplos de situações em que a reconciliação é difícil, ou mesmo impossível, embora o perdão possa ser uma realidade no coração da pessoa ofendida. Penso que são exemplos suficientes para lhe dar uma ideia do que quero dizer: que perdão é diferente de reconciliação, quando esta não parte do lado que ofende. Isto é: o lado ofendido perdoa mas a iniciativa da reconciliação deve caber à parte que ofende. Jesus diz: «Se te lembrares que o teu irmão tem alguma coisa contra ti…» (Mt 5, 23); e não: «Se te lembrares que tens alguma coisa contra teu irmão…».

Este artigo procura ilustrar uma das ideias do anterior e dizer que a reconciliação não está na mão de uma só das partes envolvidas. O perdão, sim. Qualquer uma das partes pode perdoar isoladamente. Mas para haver reconciliação é preciso haver duas partes com boa vontade.

 

Gonçalo Miller Guerra, sj

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