Assim o autor bíblico nos conta a criação do homem: “O Senhor Deus formou o homem do pó da terra e insuflou-lhe pelas narinas o sopro da vida, e o homem transformou-se num ser vivo” (Gn 2, 7).
Somos um nada insignificante, como o pó. Mas este nada, trabalhado por Deus, transforma-se numa obra de arte esculpida à sua imagem e semelhança. “Somos da raça de Deus”, como recorda Paulo discursando no areópago de Atenas (At 17, 29). Somos “participantes da natureza divina” (2 Pe 1, 4) afirma o apóstolo Pedro.
Pedagogicamente, a liturgia da Igreja vem recordar-nos o pó da nossa pequenez e fragilidade, que precisa de conversão, de ser enriquecido pela graça que só Deus pode dar. A Quaresma, quarentena preparatória da celebração da Páscoa, começa com o rito da imposição das cinzas. O Diretório sobre a piedade popular e a liturgia assim apresenta este forte sinal: “O começo dos quarenta dias de penitência, no Rito romano, caracteriza-se pelo austero símbolo das cinzas, que caracteriza a liturgia da Quarta-feira de Cinzas. Próprio dos antigos ritos nos quais os pecadores convertidos se submetiam à penitência canónica, o gesto de cobrir-se com cinza tem o sentido de reconhecer a própria fragilidade e mortalidade, que precisa ser redimida pela misericórdia de Deus. Este não era um gesto puramente exterior, a Igreja o conservou como sinal da atitude do coração penitente que cada batizado é chamado a assumir no itinerário quaresmal. Devem ajudar os fiéis, que vão receber as Cinzas, para que aprendam o significado interior que este gesto tem, que abre cada pessoa à conversão e ao esforço da renovação pascal” (n. 125).
O sinal das cinzas deve ser inspirador de realismo, advertindo-nos que, por nós próprios, somos muito pouco, e que a nossa vida é um bem frágil, como recorda o poeta João de Deus: “A vida é o dia de hoje, a vida é ai que mal soa, a vida é sombra que foge, a vida é nuvem que voa”. Mas esta fragilidade humana é amada por Deus infinito que nos fortalece com a graça da sua misericórdia e nos anima a viver na esperança.
O “Imperador da língua portuguesa”, como Fernando Pessoa qualifica o padre António Vieira, no sermão de Quarta-feira de Cinzas de 1670, em Roma, na Igreja de Santo António dos Portugueses, assim nos define enquanto vivos: “pó levantado”, pois pela morte passamos a ser “pó caído”. Esta imagem forte deve conduzir-nos pelos caminhos da humildade, evitando pretensiosismos e vanglórias, reconhecendo que só o que Deus faz em nós nos torna grandes. O resto é a oca vaidade do “pó levantado”, como recorda o autor bíblico: “Vaidade das vaidades, tudo é vaidade” (Ecl 1, 2).
A Mensagem do Papa Francisco para esta Quaresma ajuda-nos a que o realismo sobre nós próprios, sobre a Igreja e o mundo não seja deprimente, mas tenha o otimismo da esperança. Assim nos faz um “apelo à conversão: o da esperança, da confiança em Deus e na sua grande promessa, a vida eterna. Devemos perguntar-nos: estou convicto de que Deus me perdoa os pecados? Ou comporto-me como se me pudesse salvar sozinho? Aspiro à salvação e peço a ajuda de Deus para a receber? Vivo concretamente a esperança que me ajuda a ler os acontecimentos da história e me impele a um compromisso com a justiça, a fraternidade, o cuidado da casa comum, garantindo que ninguém seja deixado para trás? Irmãs e irmãos, graças ao amor de Deus em Jesus Cristo, somos conservados na esperança que não engana (cf. Rm 5, 5). A esperança é a âncora da alma, inabalável e segura”.
Estamos no Ano Jubilar 2025 que tem por lema “Peregrinos de esperança”. Lembra-nos que a vida não é um parque de estacionamento, mas um caminho para percorrer em direção a mais e a melhor. O pó de que somos feitos é um tesouro se deixarmos que a graça de Deus o trabalhe e molde, para bem de todos. O nada do nosso pó, com as asas da esperança, faz-nos voar até ao infinito de Deus. Caminhemos jubilosos na esperança.
Manuel Morujão, sj