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Os porquês do Silêncio: notas sobre uma entrevista

Como chegou Martin Scorsese ao “Silêncio”? O realizador acabara de realizar “A Última Tentação de Cristo”. O Arcebispo Paul Moore, da Igreja Episcopal em Nova Iorque, tendo visto e comentado o filme, ofereceu-lhe o livro de Shusaku Endo. Começava aí uma história de interrogações e provocações interiores sobre a vida e seus ‘lugares’: a violência, a fé, a integridade, o horror, a graça. Estávamos em 1988.

Não sei ao certo se terei pensado em fazer o filme imediatamente. A história era tão perturbadora e tocava-me tão profundamente que não sabia se alguma vez teria sequer capacidade de o fazer. Mas, com o passar do tempo, algo me dizia: ‘Tens que tentar’. (…) Olhando para trás, penso que este longo processo de gestação foi, para mim, uma forma de viver com a história e de viver a vida – a minha própria vida – em torno dela, em torno das ideias do livro. Essas ideias mexeram comigo e fizeram-me regressar novamente à questão da fé. Olhando para trás, tudo isto se me assemelha a uma peregrinação – foi assim que o senti.

Partindo da longa entrevista de Martin Scorsese agora publicada, é difícil separar a sua reflexão sobre a fé (ou a sua «obsessão pelo espiritual») da sua meditação sobre a vida. De imediato, porque a questão de Deus, da fé ou da santidade se lhe apresentou, antes de mais, como uma interrogação existencial. Acólito, vivendo num meio familiar católico com raízes italianas, o realizador cresceu embebido em relatos de um Deus castigador, apenas temperados pelo testemunho do seu pároco (padre Principe) – um homem capaz de misericórdia.

Tal como muitas outras crianças, vivi estarrecido e muitíssimo impressionado pelo aspecto severo de Deus, tal qual nos era apresentado – segundo o qual Deus nos castiga quando/se fazemos algo de errado, o Deus dos raios e trovões.

Por outro lado, a fé, antes de ser uma questão ritual, parecia-lhe ser sobretudo uma experiência de todos os dias.

De pequeno fui percebendo que ‘ser praticante’ não é algo que acontece num espaço sagrado, durante certos ritos, a determinadas horas do dia. ‘Ser praticante’ é algo que acontece lá fora, a toda a hora. ‘Ser praticante’, de facto, é tudo o que fazes, bom ou mau, e [o modo como] reflectes sobre isso. Eis o desafio.

Ora, o desafio parece ser tanto maior se considerarmos o quão ambígua a vida pode ser. A vida tem um lado brutal, violento, auto-destrutivo.

Será que podemos cultivar a bondade a ponto de, numa fase futura da evolução da humanidade, a violência desapareça? O certo é que, nesta fase, a violência existe. É algo que fazemos. É importante mostrá-lo, para que ninguém caia no erro de pensar que a violência que só toca aos outros – que os ‘violentos’ são os outros. «Eu era incapaz de fazer tal coisa». Bem, na verdade, eras.

A violência é uma parte do ser humano. O humor, nos meus filmes, provém das pessoas e da sua forma de pensar, ou da sua irreflexão. A violência e a ‘profanidade’ da vida. Ou o aspecto telúrico, se quisermos ser mais elegantes. A profanidade e a obscenidade existem, o que significa que fazem parte da natureza humana. Não que ela o seja por inerência – mas antes que é uma das formas possíveis de ser-se humano. Não é uma boa possibilidade, mas é uma possibilidade.

Falando do seu célebre “Touro Enraivecido” (Raging Bull, 1980), o realizador mostra como, tantas vezes, a violência (ou o castigo) contra os outros esconde uma outra forma de violência, não menos sangrenta, contra si próprio. Subtilmente, a questão da imagem de Deus (o Deus da punição) remete para a nossa capacidade de integrar a nossa própria imperfeição.

[No filme “Touro Enraivecido”, o personagem] Jake castiga todos os que estão à sua volta quando, de facto, ele se está a castigar a si próprio. No final, quando ele se olha ao espelho, vê que deve ser misericordioso consigo próprio. Dizendo de outro modo, ele tem que se aceitar e viver consigo mesmo. Talvez então se lhe torne mais fácil viver com os outros, e acolher a sua bondade. (…) [É preciso] aceitar-se a si próprio, viver consigo mesmo. (…) Penso que essa é uma forma de definir o que seja a ‘salvação’. Isso estende-se às pessoas que amas: a tua família, os teus amigos, os teus entes queridos. Tentas ser o melhor que puderes, e o mais sensato e compassivo que te for possível.

Retratar a vida sem ignorar os seus contornos ásperos insere-se numa dinâmica fundamental de ‘reconhecimento’. Reconhecer-se sem ilusões mas sem punições. Essa seria, talvez, uma primeira dimensão da vida espiritual, segundo Scorsese. Essa dinâmica interior anda a par de outra, exterior. Como viver (e manter) a fé em condições de adversidade?

O cineasta abordou por diversas vezes a questão, ora procurando o testemunho de santos, ora reflectindo sobre o que significa ser-se padre. Ao longo da sua carreira, o realizador mostrou interesse em retratar vidas de santos, perguntando-se porque são santos os santos? Uma vez mais, a ideia da compaixão emerge como lugar fundamental.

[Pensei explorar uma questão]: o que é um santo? (…) Temos figuras como um Francisco, uma Catarina, uma Teresa. Nenhum deles era aquilo a que eu chamaria de um santo activista, e eles eram extremamente diferentes de alguém como o Padre Pio, por exemplo. A essência [da santidade] – compaixão, amor, viver a vida imitando a Cristo – e a questão sobre como viver uma vida assim no mundo moderno – foi algo que ocupou Rossellini no seu filme Europa ‘51.

A imitação de Cristo seria, então, o fundamento de uma experiência de fé. O tema da ‘imitação’ não está isento de dificuldades. Como pode alguém ser em função de um outro? Aqui, a figura do ‘padre’ é arquetípica. O ‘padre’, sendo ‘chamado’, deve procurar viver descentrado de si, numa atitude de disponibilidade aos outros.

Quando era mais novo pensei fazer um filme sobre ser padre. [Pensei, eu próprio, ser padre, até que acabei por descobrir, aos 15 anos, que] uma vocação é algo de muito especial, algo que não podes adquirir por ti mesmo e que não é algo que possas ter apenas porque gostavas de ser parecido com outro pessoa. (…) Ora, se alguém é de facto chamado, como pode lidar com o seu orgulho próprio? (…) Por isso, a questão é : como pode um padre libertar-se do seu ego? Do seu orgulho? Eu queria fazer esse filme. E fi-lo com “Silêncio”, quase 60 anos depois. (…) Rodrigues bate-se precisamente com essa questão.

Quando chegamos ao “Silêncio”, vemo-nos perante um filme que condensa uma reflexão sobre a fé. O que significa crer? De que modo imagem de Deus e reconhecimento de si interagem? Como crer quando a fé é posta à prova? O filme coloca-nos enfim diante do aspecto paradoxal da fé, onde renunciar e afirmar podem coincidir, tal como a misericórdia pode coincidir com o reconhecimento da miséria.

Não sabemos em que é que o padre Ferreira acreditava, de facto, do ponto de vista histórico. Mas, no romance de Endo, parece claro que ele perde a fé. Numa perspectiva diferente: talvez lhe parecesse insuportável lidar com a vergonha de renunciar à fé, ainda que fosse para salvar a vida de outros.

Rodrigues, por seu turno é alguém que renuncia à fé e que, por esse meio, a recupera. É esse o paradoxo. Simplificando: Rodrigues ouve Jesus dirigir-se-lhe, enquanto Ferreira não; aí está a diferença.

Rui Fernandes, sj

Nota: Texto baseado na entrevista « ‘Silence’: Interview with Martin Scorsese », feita por António Spadaro SJ, in La Civiltà Cattolica, 2016 (nº 3996).

 

Autor : Rui Fernandes, sj

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