A nossa forma habitual de pensar tende a ver o caminho cristão como um caminho de aperfeiçoamento, um caminho de crescimento pessoal, ético e religioso. A vivência cristã corresponde, na nossa mentalidade, a um tentar chegar cada vez mais perto a um modelo de virtude (que tendemos a identificar com Cristo).
Aqui entra o paradoxo: a abertura à experiência da Graça provoca em nós um baixar das nossas defesas. Percebemos que, nas narrativas dos Evangelhos, os discípulos são chamados a passar progressivamente do lado dos fariseus e doutores da lei (seguros da sua justificação), para o lado dos que reconhecem as suas feridas e clamam a Jesus: «Senhor, tem piedade de nós» (cf. Lucas 18, 35-43).
Talvez este seja um sentido privilegiado do tempo de Quaresma que agora se inicia: através dos sinais (as cinzas, o jejum, a esmola), e através de um escutar mais aberto e atento das Escrituras, poderemos ser acolhidos na experiência da Misericórdia que nos faz nascer de novo, ainda que sejamos velhos (de idade, de mentalidade… cf. João 3, 2-3). Assim poderemos compreender as palavras libertadoras de Isaac de Nínive, monge cristão do século VII:
«Deixa-te perseguir, mas tu não persigas;
deixa-te crucificar, mas tu não crucifiques;
deixa-te ultrajar, mas tu não ultrajes;
deixa-te caluniar, mas tu não calunies.
Sê alegre com os que se alegram;
chora com os que choram.
Tal é o sinal da verdadeira pureza.
Sofre com os que sofrem;
compadece-te dos pecadores;
e alegra-te com os que se arrependem.
Sê amigo de todos…
Estende o teu manto sobre aqueles que vês cair em pecado e cobre-os;
e se não podes carregar sobre ti o seu erro,
e receber em sua vez a punição,
não os oprimas mais».
Que o manto da misericórdia nos abra os olhos e o coração, para contemplarmos a manhã de Páscoa. E que esta Quaresma seja um tempo feliz e fecundo.
Texto: Rui Vasconcelos
Imagem: Georges Rouault, Christ moque par soldats, 1932
Citação: Isaac de Nínive, Discursos Ascéticos, 58; citado em A Via da Misericórdia (org. Isidro Lamelas), Lisboa 2016, p. 44.