Uma a escorregar timidamente pelo rosto abaixo dum colega meu, no seu leito de sofrimento, como resposta envergonhada ao meu não saber que lhe dizer, enquanto lhe punha a mão na testa: Coragem. Deus está consigo!. Foi certamente a última lágrima antes de entrar no sono misterioso da morte que ocorreria dois dias depois. O colega partiu para a Casa do PAI, mas a lágrima continua recolhida em mim. Como recolhida continua em mim aquela outra, também ela furtiva, daquela senhora no sacramento da reconciliação. Neste caso, era lágrima de alegria libertadora de quem sentia perdoada a sua história pessoal.
De vez em quando dialogo com estas duas lágrimas furtivas sobre se a melhor definição do homem é a de animal racional ou a de animal que chora. Os cães (por exemplo) também conseguem mostrar tristeza no seu olhar triste, como conseguem brincar de alegria saltando à nossa volta. Lágrimas, porém, nunca lhes vi. Por isso percebo o que de graça tem o Dom das Lágrimas concedido a alguns santos. É que a lágrima traz sempre consigo o coração onde nasce e de onde vem.
A caminho do Calvário umas santas mulheres de Jerusalém choram ao verem o estado lastimável em que vai Jesus de Nazaré com uma pesada cruz às costas; no Alto do Calvário, está Maria, sua Mãe, junto à Cruz. Está desfeita em lágrimas, mas está de pé, com o coração também ele bem de pé. Mulher Forte, gostamos de dizer. No horto onde José de Arimateia sepultara o Senhor deambula desvairada Maria de Magdala, também ela desfeita em lágrimas (sem parar de chorar, informa o evangelista João), em busca do amado. Chora porque não encontra o tesouro onde tem o coração. Sobre Jerusalém já, aliás, chorara o próprio Senhor Jesus ao ver os seus habitantes distraídos no mundo das futilidades e materialidades, não se apercebendo de Quem os estava a visitar.
Tinha razão o profeta Ezequiel quando séculos antes se deu conta que o problema do seu povo estava no coração, e que não chegava imprimir nele a Lei dada por meio de Moisés, como julgava o profeta Jeremias. Que adiantava imprimir a Lei num coração de pedra? Por isso, pede ao Senhor que lhe arranque aquele coração e em seu lugar coloque um de carne que sinta, que chore, que tenha compaixão (Tenho compaixão da multidão, dirá Cristo), que se aproxime (Parábola do Samaritano), que acolha publicanos e mulheres de má vida e que abrace (Parábola do Filho Pródigo) com o calor do Pai e de Pai.
Este é o Coração de Jesus que anda por aí nos caminhos dos homens com os pobres, os aleijados, os nus, os cegos e os desvalidos de toda a ordem com quem se identifica, com quem chora, e de quem tem pena por andarem como ovelhas sem pastor.
Quaresma é muito mais que Tempo litúrgico e cumprimento dumas certas práticas de jejum e penitência. É até muito mais (ouso pensar) que um mudar de caminhos e de vida (conversão). É sobretudo um assunto de coração onde, por vezes, as lágrimas do arrependimento e as lágrimas da reconciliação acontecem como Graça e Dom. Graça a pedir e Dom a agradecer, enquanto andarmos caminhando neste Vale de Lágrimas, como diz o nosso povo. E o povo sabe muito bem do que fala.
Se alguém quer vir após Mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz, dia após dia, e siga-Me, diz o Senhor. Mas leve o coração, acrescentaria eu. Porque vai precisar de chorar e derramar lágrimas. Umas dolorosas, outras profundamente libertadoras. Porque a vida não acaba na cruz. Vai muito, muito para além dela. Felizmente!
A. da Costa Silva, sj