O Evangelho de João gosta de água: esta percorre o texto, como um veio subterrâneo, desde a figura de João – que anuncia Aquele que batizará no Espírito – até ao dom maior da Cruz, na qual Jesus abre o seu peito oferecendo o sangue e a água, o jardim primordial, a Páscoa da ressurreição.
No meio do seu Evangelho, João apresenta a Jesus numa ocasião solene – o último dia da festa das Tendas – de pé, a clamar:
«Se alguém tem sede, venha a Mim;
e quem crê em Mim que sacie a sua sede!
Como diz a Escritura,
hão de correr do seu coração rios de água viva» (Jo 7, 37-38).
Notou Agostinho de Hipona, no século quarto, que Jesus não Se limita a dizer ou a falar: o Senhor grita, eleva a sua voz, proclama no coração de Jerusalém, convidando-a a reconhecer o seu Esposo, Aquele que é capaz de saciar as sedes que transportamos. Comentou Agostinho:
«Se temos sede, vamos: não com os pés, mas com os afetos;
vamos, não emigrando, mas amando,
ainda que, no homem interior, quem ama emigra».
Gostamos de construir cisternas. Estas pertencem mais à nossa natureza, são por algum motivo mais próprias da nossa mentalidade. Desfrutamos de ver a água a correr, a brotar de uma fonte, a rasgar escarpas e itinerários; mas, na hora derradeira, as cisternas revelam-se mais atrativas, ou, pelo menos, apresentam-se como necessárias, ainda que não as queiramos.
Talvez o Senhor tenha escolhido a imagem menos correta. Ou talvez tenha sido por isso que teve de gritar, de Se pôr de pé e de Se colocar no centro de uma das grandes festas litúrgicas de Jerusalém: por nos conhecer excessivamente bem, a nós e ao nosso desejo.
Texto: Rui Pedro Vasconcelos
Imagem: Filippo Rossi, Notte di Stella II, 2006 (in https://www.artfree.it)