Mas o quê? Agora até a indiferença é santa?
Esta palavra «indiferença», com o passar do tempo, adquiriu um significado muito diferente daquele que originariamente tinha. Na Igreja primitiva, era usada para indicar que uma pessoa não queria outra coisa que não fosse a vontade de Deus. Significava acreditar que a vontade de Deus é o melhor para nós e estar livre para a seguir.
Vejamos: Santo Inácio de Loiola, fundador do Jesuítas, propõe um percurso espiritual, que ele mesmo experimentou na sua vida e depois propôs a todos aqueles que o quiserem experimentar, nos chamados Exercícios Espirituais. Tendo por fundamento a sua própria vida, Inácio foi capaz de saber ler a sua experiência espiritual à luz da vida de Cristo e não o poderia ter feito sozinho. Inspirando-se em vários autores espirituais da grande tradição da Igreja, por exemplo, São João Cassiano, São João Clímaco e outros, pôde então «ler» a ação de Deus na sua vida e depois, refletindo, pôde propor-nos o itinerário espiritual que hoje encontramos nos Exercícios Espirituais.
Diz Orígenes que Adão, antes do pecado, no paraíso, olhava para o alto e tinha os olhos fixos em Deus. Com o pecado, passou a olhar para baixo, para as coisas do mundo. Assim, encontrar Deus na nossa vida significa readquirir um olhar fixo nEle. E como podemos nós ter este olhar fixo em Deus? Diz Jesus que são os puros de coração que veem Deus (Mt 5, 8). Isto significa que são os puros de coração aqueles que têm o olhar fixo nEle. Ora, e purificar o coração o que significa? Como se alcança?
Para estes autores espirituais é claro que este é um caminho progressivo e que não depende exclusivamente de nós: é uma graça a pedir, mas que pressupõe algum esforço do nosso lado. São João Clímaco, na «Escada do Paraíso», apresenta inicialmente este percurso como sendo uma escada que somos convidados a subir e que liga a terra ao Céu. Mais tarde, dirá que na verdade a escada liga a cabeça ao coração de cada um de nós, guia-nos para a nossa própria interioridade. É este o grande caminho da nossa vida em direção ao nosso interior, onde encontraremos o Senhor. O último «degrau» deste percurso, para o qual é preciso apontar, chama-se «indiferença» e São João Clímaco diz, com muito entusiasmo, que esta é «o Céu sobre a terra, a ressurreição antes da ressurreição dos corpos».
Atenção! Isto não significa viver sem sensibilidade, mas antes segundo a razão que vem da fé em Deus. Em poucas palavras: aquilo que o «indiferente» (entendido neste contexto) vive é uma insensibilidade em relação a tudo o que não tem a ver com a vida em Cristo e, por outro lado, desenvolve uma forte sensibilidade pela voz de Deus no mundo. Isto não significa insensibilidade ao sofrimento dos outros ou aos males do mundo, mas exatamente o seu contrário: o cristão que vive a indiferença, isto é, não vive preocupado consigo mesmo, é particularmente sensível aos sofrimentos do mundo precisamente porque está mais disponível para escutar a voz do Deus à sua volta.
Gonçalves da Câmara, Jesuíta português a quem Santo Inácio ditou a sua Autobiografia, dizia no seu Memorial que para Santo Inácio bastariam uns momentos na capela para recuperar a paz interior perante qualquer acontecimento adverso, mesmo que fosse a extinção da Companhia de Jesus. A indiferença é exatamente isto: indica a confiança total em Deus e a certeza que Ele nunca nos abandona. Outro modo de dizer esta indiferença pode ser «alma em paz» ou «tranquilidade interior». Quando, nos Exercícios Espirituais, Santo Inácio nos diz que «é necessário fazer-nos indiferentes a todas as coisas criadas, em tudo o que é concedido à liberdade do nosso livre arbítrio, e não lhe está proibido; de tal maneira que, da nossa parte, não queiramos mais saúde que doença, riqueza que pobreza, honra que desonra, vida longa que vida curta, e consequentemente em tudo o mais» (EE 23) está a dar-nos uma excelente indicação do significado da indiferença.
Vale a pena sublinhar ainda que Inácio diga que «é necessário fazer-nos» indiferentes. Exige da nossa parte alguma colaboração e esforço: em primeiro lugar, é necessária a purificação do pecado, precisamos escolher não querer pecar. Em segundo lugar, é necessária a escolha explícita de uma vida segundo o modelo de Jesus Cristo, isto é, escolher uma vida vivida em Amor: só este nos pode preencher o coração para que não nos deixemos turbar por aquilo que não vem de Deus.
A indiferença inaciana corresponde àquilo que Orígenes chama de «regresso ao paraíso», isto é, corresponde a fixar o olhar em Deus e não querer outra coisa sobre esta terra que não seja viver segundo esse olhar de Amor.
Marco Cunha, sj