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“Há algo que fala em nós e nos fala”

A frase foi escrita, há relativamente pouco tempo, num jornal de referência, por Eduardo Lourenço. Tropecei nela e nela tenho andado a tropeçar até hoje, dia em que começo estas linhas para “O mundo à nossa volta” do site do AO, mundo este tão cheio de barulhos e ruídos, alguns ensurdecedores, em que muito se fala, berra e vocifera, mas onde raramente as pessoas se ouvem. Se é que se querem ouvir, o que duvido. Ouvir dá muito trabalho porque implica disposição interior para a mudança e abertura ao outro. Por isso é mais fácil falar para “convencer” (só que isso não é comunicar), ou berrar para “vencer” (só que isso é despotismo), ou vociferar palavrões para “denegrir” (só que isso é ofender). Há muito barulho, mas o diálogo é de surdos por mais alto que se fale.

Talvez o problema resida na incapacidade de nos ouvirmos primeiro no íntimo de nós mesmos. E, talvez, o problema da incapacidade de nos ouvirmos no íntimo de nós mesmos esteja no medo de ouvir esse “algo que fala em nós” (porque nos incomoda) “e nos fala” (porque nos inquieta). Eduardo Lourenço referia-se à dimensão transcendente da vida humana. O homem em particular e a sociedade em geral não sabem o que fazer do transcendente nem com o transcendente porque, como disse, incomoda e inquieta. Por isso, tão pouco sabem o que fazer de Deus e com Deus. E porque na sua negação está simultaneamente implícita a sua afirmação, o melhor é esquecer, fazer de conta ou proceder “como se” não existisse.

E lá vamos, sem Deus quando não contra Deus, tentando construir a nossa história coletiva e as nossas histórias pessoais com todas as consequências conhecidas. O resultado está à vista. Basta ler as notícias e ver os telejornais para confirmar o versículo do Salmo que diz: “Se Deus não construir a cidade, em vão labutam os homens por construí-la” (cito de memória).

Felizmente que esse “algo que fala em nós e nos fala” continua lá, no mais fundo de nós próprios, a falar (voz) e a falar-nos (mensagem). Voz e mensagem a caminharem connosco ao longo das nossas histórias, como apelos de Deus à verdade que nos liberta e à reconciliação entre os homens, único caminho para a paz e bem-estar de todos e para todos e não só de alguns e para alguns.

Não sei se estou a escrever sobre Deus ou sobre o homem. Sei apenas que o homem pode negar Deus por palavras, obras e omissões, mas nunca conseguirá matar definitivamente a sua voz dentro de si, quer queira quer não, quer goste quer não goste. O grande problema no meio de tudo isto é que Deus e o Homem estão condenados a terem de se entender, pela simples razão de que Deus não pode deixar de ser o que é (Criador e Pai) e o Homem (Criatura e Filho) não consegue ser o que não é. Seria, quando muito, uma imagem falseada de si mesmo.

Neste “algo que fala em nós e nos fala” reside afinal a janela sempre aberta à esperança de melhores dias. E estes estão ao nosso alcance. Só é preciso abrirmo-nos a essa voz que, neste momento e neste contexto, traduzo na frase evangélica: “Se hoje ouvirdes a voz do Senhor, não fecheis os vossos corações”. A solução para os graves problemas que hoje ameaçam a sociedade, pode bem morar aqui. É na abertura a Deus que nos encontramos a nós próprios e uns com os outros. Mais que de desejos de paz tantas vezes expressos e proclamados solenemente (leia-se: com barulho) nas instâncias internacionais, precisamos, como de pão para a boca, de parar para escutar essa Voz que anda abafada. Acredito que é o caminho que nos pode levar ao abraço da reconciliação e da paz e nos torna irmãos.

 

A. da Costa Silva, sj

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