“Resplandecia seu encardido semblante, poucas vezes se sentira tão alegre, muita gente ia chorar naquele dia (…) ranger os dentes. E existe no mundo espectáculo tão esplêndido e excitante (…) como o do sofrimento alheio? Para Célia não existia nada igual. Jamais um homem olhara para seu corpo com olhos de desejo, jamais alguém lhe sorrira com amor, e as crianças da escola tinham-lhe medo, fugiam dela”1. [Célia era uma professora primária, feia e com as pernas defeituosas.]
Caro leitor, eu já vi as caras de duas pessoas brilhar com esta felicidade causada pelo antegozo do sofrimento que iam causar. Nos dois casos, a vítima eram pessoas que se lhes dirigiam sempre muito educadamente e com bondade. Os agressores tomavam isso por fraqueza, o que só excitava a sua maldade. Quando as vítimas, achando que tinham de pôr basta a tal despautério, lhes fizeram frente, o seu sadismo murchou. (Estas pessoas normalmente são cobardes e agridem, apenas, quem entendem ser “mole”.) “Fazer frente” não quer dizer retorquir. Isso ainda excitaria mais estas pessoas. “Fazer frente” significou, para as vítimas, deixar de reagir às diatribes. No presente caso, deixaram de falar aos agressores, mostrando-se sempre firmes nesse propósito. Desta maneira amaram-se a elas mesmas – defendendo-se – e amaram os agressores, não lhes dando azo a exercer o seu vício sádico.
“Jamais (…) alguém lhe sorrira com amor, e as crianças da escola tinham-lhe medo, fugiam dela”. Célia tinha transmutado a sua dor numa agressividade extasiada com a dor alheia. E um método seguro de ter a certeza que os outros sofrem é ser ela mesmo a feri-los.
Célia tornara-se má e azeda por nunca ter atraído um homem, por nunca ter visto ser-lhe dirigido um sorriso de amor, por nunca ter sentido o carinho e amor de uma criança por ela. Como que passava a sua dor para outra pessoa e com um prazer deslumbrante.
Os agressores cujas malvadezes conheci também eram pessoas frustradas quanto ao carinho, atenção, amor que entendiam ser-lhes devido. Doridas, muito doridas, tentavam abafar o seu sofrimento com o prazer de assistir ao sofrimento alheio. Cobardes, desistiram dos seus intentos assim que se lhes fez face.
As vítimas têm a obrigação de amar os ofensores2. Amar não é (necessariamente) ser simpático ou conviver com o amado. Amar é fazer o melhor para o objeto do amor; neste caso impedi-lo de pecar.
1 Dona Flor e Seus dois Maridos. Obras de Jorge Amado, 6. Publicações Europa-América, 6.ª edição, 1977, pág. 132.
2 “Eu, porém, vos digo: Amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem” (Mt 5, 44).
Gonçalo Miller Guerra, sj