Não estamos em junho, mas como levo no nome o Coração de Jesus não preciso duma razão. Posso falar dele em qualquer altura.
Quando entrei na Congregação, em outubro de 1984, não tive problemas de identificação com o nome “Escrava”, apesar do anticultural e forte que é!
Tive, sim, uma certa rejeição pelo nome incluir também “Sagrado Coração de Jesus”. O meu imaginário estava cheio daquelas estátuas, imagens e quadros religiosos que O representavam como um Rudolfo Valentino, de coração de fora, muito pouco estético e atrativo, pintado de vermelho e dourados!
Esta forte rejeição estética tinha em mim um efeito muito nocivo. Impedia-me de entrar na imensidade teológica do Seu Coração e da relevância que tem tê-lo no nosso próprio nome.
Foi o Pe. Pedro Arrupe, sj com a coletânea dos seus escritos no livro “En El solo… la esperanza”, que acidentalmente me caiu nas mãos ao limpar o pó da biblioteca durante o meu 2º ano de noviciado, que me ‘converti’ ao Coração de Jesus e Ele se tornou uma paixão. Internamente, também Stª Rafaela Mª mudou de nome e intuí o ‘mar sem fundo’ de que falava. Afetivamente passei a tratá-la pelo nome que ela mesma escolheu, Maria del Sagrado Corazón.
Esta paixão marcou a minha 3ª provação. Horas a fio naquela igreja de Monti Parioli, diante do Santíssimo e daquele enorme crucifixo, em que Cristo tinha uma expressão completamente diferente dependendo do lado em que nos sentávamos na igreja. O meu lado preferido era o da esquerda. A Sua cabeça caída confirmava a expressão do Seu rosto tranquilo, no Pai, com um sereno “tudo está consumado” inscrito nos olhos fechados e nos lábios que pareciam acolher o quase imperceptível sorriso de quem tudo fez, regressa a casa e pode finalmente descansar.
O ‘resultado’ dessas horas a fio acabaram por se transformar numa declaração/oração no final daqueles 6 meses em Roma. Usando a terminologia inaciana, aquele texto “Com os olhos postos n’Ele – manso e humilde de coração” foi fruto de muita repetição e aplicação de sentidos!… não sei o que fiz dessa folha…
Com o passar dos anos, e do muito que estes anos significam de vida, a definição do Seu Coração como manso e humilde, a abertura do Seu lado pela lança e o pôr as mãos bem lá dentro como Tomás, podem talvez resumir a minha própria vida como Escrava.
A paixão pelo Coração de Jesus levou-me, por sua vez, à descoberta de Pedro Arrupe, sj que se tornou o mais importante Mestre espiritual contemporâneo que tenho. Foi através dele que cheguei ao conhecimento do JRS e do que viria a significar na minha vida concreta de Escrava.
No passado dia 28 de dezembro fui a Qaraqosh, cidade iraquiana recentemente reconquistada ao DAESH. Ao visitar a Igreja da Imaculada Conceição, completamente queimada e vandalizada, entrei numa das sacristias pintada a preto pelo fumo do fogo.
Com aquela emoção que nos faz sentir com dor as pulsações do próprio coração, fui atraída, como um iman, para o que restava duma imagem religiosa feita de gesso poisada sobre uma cómoda meia destruída.
Era uma imagem de Cristo, tipo Rudolfo Valentino, com o que restava dum coração de fora, muito pouco estético e atrativo, pintado a vermelho e dourados!!!… Só que desta vez nunca me pareceu tão belo! Como nenhuma outra obra de arte que fosse capaz de o representar.
As lágrimas vieram-me aos olhos… Creio que naquela obscura sacristia fui agraciada com a consolação dolorosa provocada por mais uma molécula no conhecimento interno desse Seu Coração aberto, amante e sempre presente no reino da dor e da morte.
Para cúmulo, tenho-O comigo… uma das pessoas com quem fui a Qaraqosh voltou lá e trouxe-mo: “for the Sister of the Sacred Heart!”… lixo para uns, ouro para mim! Um jesuita que estava comigo quando recebi o embrulho disse: “agora temos que o benzer… que disparate! Está mais que abençoado por tanto sofrimento!”
Tinha que escrever. Parece que outro ciclo se fecha. Até naquilo que rejeitava encontro agora uma tremenda beleza : um Sagrado Coração, vermelho e dourado, aberto pelas lanças que tanta gente decapitaram.
Irene Guia, aci
09 de janeiro de 2017