Lembro-me como se fosse hoje. Depois de algumas tribulações na escala em Barcelona, tinha acabado de chegar a Tessalónica. Dirigi-me ao parque onde estava estacionada a ambulância que nos servia de consultório. Depois de uma rápida introdução ao conteúdo e funcionalidades da ambulância, era altura de começar a trabalhar.
Uma das pessoas que aguardava ser atendida era o Drice, marroquino que falava árabe e francês. Como naquele momento não tínhamos tradutor de árabe e eu era o único que sabia falar francês, foi ele o meu primeiro doente “oficial”.
Como tantos dos seus companheiros, tinha empreendido a extenuante e perigosa viagem a pé desde a fronteira da Turquia até Tessalónica, isto após ter partido de Marrocos até à Turquia de avião. Não era propriamente um refugiado, na medida em que, de acordo com o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), refugiados são pessoas que estão fora de seus países de origem por fundados temores de perseguição, conflito, violência ou outras circunstâncias que perturbam seriamente a ordem pública e que, como resultado, necessitam de ‘proteção internacional’.
O Drice não era uma destas pessoas, apenas um rapaz que procurava melhores condições de vida do que aquelas que poderia encontrar no seu país. Alguém que tal como muitos portugueses, parte para um outro país em busca de melhores condições de vida e em fuga das malhas da pobreza e exclusão social.
Durante o longo caminho, tinha-se ferido na perna esquerda e a ferida estava com um aspeto infetado. Desenferrujando o francês, fiz-lhe algumas perguntas e fui percebendo que seria necessário fazer um Raio-X para confirmar que não havia fratura óssea e que seria necessário tomar antibiótico.
Quanto ao Raio-X, que obviamente não estava disponível na nossa clínica ambulante, tive de escrever uma referência para o hospital grego, na esperança que o doente lá fosse e que efetivamente lhe fosse feita a necessária radiografia. Relativamente à antibioterapia, revi rapidamente os meus parcos conhecimentos sobre antibióticos, verifiquei o que tínhamos disponível na nossa farmácia e encontrei o que me pareceu ser mais adequado para aquela situação.
E de repente estava feito. Depois do Drice, seguiram-se muitos outros, homens, mulheres e crianças de várias idades. No total, a nossa equipa viu cerca de 4 a 5 mil doentes no mês em que lá estive e outros tantos milhares noutros meses. Havia casos novos e velhos conhecidos. Cada ser humano único e irrepetível. Cada pessoa a necessitar de cuidado e atenção, o que poucas vezes aconteceu durante a sua existência.
Em todos e em cada um, procurava reconhecer o Cristo que vinha ao meu encontro. Percebi que não era eu que O levava, era Ele que já me esperava, vinha ao meu encontro em cada um daqueles que Ele me permitia ajudar. Percebi que não estava ali para salvar/curar ninguém, mas para ser salvo/curado da minha insensibilidade e indiferença ao sofrimento alheio. Tal como o leproso prostrado diante de Jesus, também eu Lhe disse: “Senhor, se quiseres podes curar-me!
O Senhor vai atendendo a minha prece gradualmente. Tal como numa doença crónica, também para a indiferença é impossível encontrar uma cura imediata e definitiva.
À medida que me mostra a minha fragilidade e me cura, o Senhor também me vai tornando mais capaz de cuidar daqueles mais enfermos, física e espiritualmente, do que eu. Nunca por mérito próprio, mas de e por Graça. Por Amor.
António Lourenço