Nem de propósito. Eu, João, vi um novo céu e uma nova terra, lia-se na 1ª leitura da Festa de Nossa Senhora de Fátima, celebrada no dia 13 de maio. Eu, João, vi um novo céu e uma nova terra, lê-se de novo na 2ª leitura do Domingo V da Páscoa, que dá início à semana em que nos encontramos. A citação é tirada do livro do Apocalipse (Ap 21, 1-5). Repetição, portanto, (os jesuítas diriam à boa maneira inaciana) a que junto, embora noutro contexto, outra citação, esta de Pedro na sua 2ª Carta, com o acrescento onde habite a justiça. Ambos (João e Pedro) estão a fazer uma referência explícita ao profeta Isaías (Is 65, 17). Não resisto, contudo, à citação completa da carta de S. Pedro, pelo que ela tem de mensagem de esperança para os nossos dias: Nós, porém, segundo a sua promessa, esperamos céus novos e uma terra nova, onde habite a justiça (2 Pe 3, 13).
Os tempos não iam de feição para a Igreja nascente. João, o autor do livro, estava desterrado na pequena ilha de Patmos, perdida no Mar Egeu, devido às perseguições do imperador romano da altura, e Pedro, companheiro das agruras pós-Ressurreição do Senhor, também sabia bem do que se tratava ao escrever o que escreveu. A perseguição dos anos 70 por Nero, que obrigara os primeiros cristãos a dispersarem para a Ásia Menor, estava ainda muito fresca, dando início a uma caminhada da Igreja, única na história da humanidade, no que diz respeito a perseguições. Apenas para refrescar a memória e só até aos princípios do séc. IV, diria que os historiadores contabilizam dez (repito: 10): Perseguição de Nero (pelo ano 70), Domiciano (pelo ano 95, à qual se refere o Apocalipse), Trajano (pelos anos 112 a 117), Marco Aurélio (161-180), Sétimo Severo (202-210), Maximiano (235-238), Décio (250-251), Valeriano (257-259), Aureliano (270-275) e Galério (309-324). E, no entanto, repito, e, no entanto, uma nova realidade estava ali a nascer; um novo Céu e uma nova terra, diria S. João; mais justa (onde habite a justiça), acrescentaria S. Pedro ao texto de João e ao do próprio Isaías.
Como não iam de feição aquando das Aparições de Fátima em 1917 com os ataques por parte da 1ª República jacobina dos Afonso Costa à Igreja na pessoa de alguns dos seus bispos, como foi o caso dos bispos de Lamego, Viseu e D. António Barroso no Porto, para não mencionar a expulsão das ordens e congregações religiosas, nem referir a 1ª Guerra Mundial a chegar ao fim com o triunfo do marxismo ateu (1914-1918). Apesar dos ataques e intimidações àquelas três crianças de 10, 9 e 7 anos, o Santuário de Fátima continua bem erguido como espaço onde se respiram céus novos e uma nova terra.
Como não vão de feição (parece) os tempos que correm, a julgar pelas igrejas atacadas e incendiadas aqui e acolá por África e não só, e que a comunicação social vai dando notícia. A caminhada da Igreja tem sido desde os seus começos uma viagem em mar encapelado onde não têm faltado ondas alterosas contra aquela frágil barca onde vão os discípulos de Jesus. Estou intencionalmente a usar a imagem da Barca que encontramos no relato da passagem duma margem do Lago Tiberíades para a outra, em direção a Carfarnaúm (Jo 6, 16-21). Esta é a situação existencial em que a Igreja faz o seu percurso histórico. Situação marítima sem os pés assentes em terra firme, o mesmo é dizer, sem os pés assentes nos poderes humanos, sejam eles económicos, políticos ou militares. Já várias vezes tentou, tentando-se (tentação), assentar os pés em terra firme ao longo da caminhada de dois mil e tal anos que já leva, saindo sempre chamuscada quando não amordaçada e corrompida.
Ontem, hoje e amanhã, perseguida, tentada ou amordaçada, a Barca de Pedro continua o seu caminho histórico contra ventos e marés, como portadora dos Novos céus e uma nova terra onde habite a justiça, sempre em construção e sempre em situação marítima. Anda, ao fim e ao cabo, no mundo dos peixes a que o grande P. António Vieira dedica o seu célebre Sermão aos Peixes, onde os grandes comem os pequenos. Mundo onde ainda há muito que fazer e por fazer no que à justiça diz respeito. É para este mundo que o Senhor continua a enviar os seus discípulos como (leiam bem!) Pescadores de homens. Hoje, a Barca vai sob a condução do Papa Francisco. Sempre, contudo, como portadora desta nova realidade. Haja, pois, Esperança!
A. da Costa Silva, sj