Uma das realidades que mais me surpreendeu e tocou a consciência e o coração, no tempo em que estive no Bangladesh, foi a quantidade de crianças que trabalha/pede esmola nas ruas.
Face à pobreza da generalidade da população, há muitas crianças que são forçadas a trabalhar para contribuir para o seu sustento e da sua família, quando a têm. E não é preciso andar a procurá-las nas fábricas, onde são feitas roupas das várias marcas que tão frequentemente compramos e usamos. Basta sair à rua numa grande cidade do Bangladesh e seremos rapidamente abordados por aquela menina de 5/6 anos que vende colares de missangas ou conchas, por aquele menino de 7/8 que vende café na praia ou se disponibiliza para nos massajar as costas em troca de uns cêntimos. Por aquela criança de 10 anos que carrega as pesadas malas dos turistas, a de 14 que conduz um tom-tom (tuk-tuk bengali) ou a de 16 que serve de guia turístico em troca de umas gorjetas. Há crianças saudáveis e subnutridas, com deficiência mental ou motora e até bebés ao colo das mães ou dos irmãos mais velhos. Todos fazem das ruas a sua fonte de rendimento e, muitas vezes, a sua casa.
Se, por um lado, a minha consciência se vai pacificando quanto a não dar dinheiro a pessoas na rua, por estar provado que o dinheiro em nada contribui para melhorar a sua condição e muitas vezes até piora, por outro, não posso não sentir um aperto no coração e alguma tristeza de cada vez que sou abordado por uma criança, ou um adulto, nas ruas a pedir esmola. Vejo como sou privilegiado e como seria fácil ser eu naquela situação.
Com efeito, continuo sem conseguir responder à questão que sempre me assola Porque não sou eu ali? Acho que não conseguirei chegar a nenhuma resposta pois a verdade é que poderia muito bem ser eu. É com isto em mente que procuro encarar qualquer missão/serviço aos mais desfavorecidos, sabendo que o Bem que possa eventualmente ser feito através de mim, por um lado, não é pelo meu mérito e, por outro lado, é muito mais Justiça do que Misericórdia. Este tipo de consciência tem-me ajudado muito a lutar contra a maldita vaidade que está sempre à espreita em qualquer ação caritativa.
Para os cristãos, se tivermos em atenção as palavras de Jesus “Tudo quanto, pois, quereis que os outros vos façam, assim fazei-o vós também a eles e o destino universal dos bens postulado pela Doutrina Social da Igreja, a Caridade é mais uma exigência de Justiça que um ato de Misericórdia. Aquilo que fizermos pelos nossos irmãos e irmãs mais pobres e desamparados não é mais do que uma tentativa de reparar as injustiças contra eles cometidas e pelas quais também nós, pela nossa inércia, somos corresponsáveis.
Enquanto cristão e médico, ajudar a restabelecer a Justiça tem sido uma das minhas grandes motivações para trabalhar junto de comunidades e populações mais vulneráveis, como é o caso dos migrantes e refugiados. Sei bem que não posso mudar o mundo nem as grandes injustiças com as quais vou contactando, mas sei que posso fazer a minha parte e tentar ser o mais justo possível. É o mínimo que posso fazer.
Ajuda-me também muito o exemplo de Maria, mãe de Jesus. Nada se fez por mérito seu mas tudo se deveu à sua completa e total disponibilidade para o que Amor quisesse fazer dela. E Ele fez Tudo.
António Lourenço