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Tortura e violência sexual

Uma das realidades que mais me chocou durante este tempo a trabalhar com refugiados foi sem dúvida o nível de violência a que são sujeitos estes seres humanos. De todos os relatos de violência que pude ouvir e testemunhar, assim como os seus efeitos nas vítimas, os que mais me impressionaram foram os relatos de violência sexual cometidos contra mulheres e homens, usados cada vez mais como uma estratégia e arma de guerra. Procurando chamar a atenção para este flagelo e também com o intuito de provocar uma resposta à pergunta “E se fosse eu?”, partilho uma das histórias que pude testemunhar na ilha grega de Lesbos e que ainda hoje relembro frequentemente.

Entraram os dois na consulta, um casal proveniente da República “Democrática” do Congo. Contaram-me que no seu país de origem, depois de participarem na celebração de uma Missa, se juntaram a uma marcha de protesto contra as políticas governamentais. Durante essa mesma marcha, as forças policiais chegaram e começaram a disparar balas de borracha e gás pimenta contra a população. Na confusão, foram presos e levados pelas autoridades até um lugar remoto. Aí ambos foram torturados. Ela, grávida de 8 meses, foi sexualmente violentada com o recurso a paus e outros objetos de tortura, enquanto ele assistia impotente a tudo isto e era também violentamente agredido.

Em virtude destes eventos, teve um parto prematuro, dando à luz uma menina felizmente saudável. Perante a instabilidade no país e o medo de serem novamente presos e torturados, decidiram partir para a Europa. Devido ao enorme risco de levar uma criança recém-nascida numa viagem tão longa e arriscada, viram-se forçados a deixar a filha de três semanas ao cuidado de familiares.

Passados alguns meses, chegam ao nosso consultório. Depois de me contarem a sua história, a mãe mostra-me uma foto da filha. Depois disso, conta-me como revê a sua filha em cada criança com quem se cruza no campo de refugiados. Olha-me nos olhos e responde-me convictamente que sim, quando lhe pergunto se já alguma vez pensou em suicídio. Por sua vez, o marido diz-me que já não sabe o que fazer para a ajudar, pois também ele tem frequentemente pesadelos com todos os eventos traumatizantes pelos quais passaram.

Olham para mim com um misto de desespero e de esperança em finalmente encontrarem alguém que os possa ajudar. A mãe pergunta-me se não tenho nenhum medicamento que lhe possa dar para apagar todas as suas memórias traumatizantes. Com pesar, digo-lhe que se houvesse tal medicamento o daria a toda a gente que vinha à clínica. Responde-me que se esse medicamento não existe, então mais vale morrer. A custo, tento convencê-la que o seu marido e a sua filha precisam dela. Pergunta-me quando voltará a ver a filha. Não lhe sei responder mas digo-lhe que tem de se manter viva e saudável até esse dia. Tento convencê-la a não perder a esperança, sem lhe poder dar qualquer garantia sobre o futuro.

Este foi apenas um dos três casais que vi nesse dia com uma história semelhante. Para além destas famílias e de outras que não chegam ao consultório, muitos são os indivíduos vítimas das torturas mais inusitadas nos seus países de origem e na travessia para a Europa.

No final de cada consulta, embora pouco possa ter objetivamente oferecido, acredito que sobra uma réstia de esperança. Não devido aos meus esforços, mas graças à incrível resiliência e fé deste povo que, mesmo no meio deste profundo desespero, ainda consegue esperar.

Depois do meu tempo em Lesbos, posso afirmar, com confiança, que nove em cada dez dos meus pacientes foram vítimas de tortura psicológica, física e/ou sexual. Por eles e pelos seus países, não vejo #metoo nas redes sociais ou fotos de bandeiras do Congo, Camarões, Serra Leoa, Burundi, Burkina Faso, Afeganistão, Paquistão, Líbia, Iraque, Síria ou tantos outros. Não vejo discursos inflamados contra os perpetuadores deste tipo de crimes ou movimentos de protesto, nem revolta perante a inércia de quem toma decisões.

Na verdade, este casal poderia ser um qualquer casal português que leve uma vida tranquila e feliz, neste “cantinho à beira mar plantado”. Mas, infelizmente, nasceram no lado “errado” do mundo.

A nós que nascemos no lado “certo” resta-nos a decisão: permanecer indiferentes ou agir.

 

António Lourenço

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