Na sequência do meu artigo sobre o rancor vamos hoje tratar da vingança.
Quando pensamos em nos vingarmos, temos em mente ver sofrer, fazer sofrer quem nos faz mal. Ou, sabermos que essa pessoa está a sofrer. Ou então desejamos-lhe mal com frases como «só quero que ele passe pelo que me fez passar». Quando é possível, deseja-se mesmo a morte da pessoa que nos fez mal como nos países onde há a pena de morte onde as pessoas maltratadas só ficam em paz quando veem (literalmente) o seu inimigo morrer.
Quando uma pessoa é magoada surgem, naturalmente, sentimentos de aversão ou mesmo de ódio, contra a(s) pessoa(s) que nos fez (fizeram) mal. Podemos esperar que o tempo vá fazendo esses sentimentos diminuírem de intensidade e isso permita começar a rezar por essa(s) pessoa(s) amar essa(s) pessoa(s). Ou podemos começar a fazer crescer dentro de nós um sentimento de aversão até ele se tornar num ódio indomável que suspira por vingança.
Com a sociedade é a mesma coisa. A sociedade pode ter sentimentos de compaixão em relação ao prevaricador ou sentimentos de ódio.
Já falámos nos casos individuais quando escrevemos sobre o perdão. Vamos agora analisar a maneira como a sociedade reage a uma ofensa que é feita a um ou mais do que um dos seus.
A primeira coisa que temos de ver quando sabemos de um crime é como é que a nossa alma da sociedade reage em relação ao criminoso. Ora, a alma da sociedade não existe. Existem é pessoas que podem moldar a nossa perspetiva, a maneira como olhamos para os factos. A comunicação social vai, mais ou menos subtilmente, orientando a nossa cabeça e o nosso coração em certo sentido. Nunca nos fazendo considerar irmãos dos suspeitos, mas sempre exibindo o seu pecado em toda a sua extensão e acicatando-nos contra eles. Monta-se um circo imenso para delícia da nossa necessidade de sangue psicológico à falta dos circos romanos ou das execuções medievais. (É o mesmo fenómeno.) E é Cristo crucificado na praça pública. O leitor já se deu conta que todos os suspeitos da operação Marquês são seus irmãos? Todos aqueles personagens de quem a comunicação social fala e cuja vida disseca para nosso gáudio são nossos irmãos de sangue. «Não, de sangue não», dir-me-à o leitor. «Pois são mais que de sangue», dirá Cristo. E aí passamos de espectadores sedentos de espetáculos de variedades para criaturas envergonhadas com os pecados da família. Porque se são nossos irmãos são da nossa família. É lógico.
O leitor dir-me-á agora. Isto parece um bocadinho fora da realidade, temos de ter os pés na terra. Temos de lidar com a realidade concreta do dia a dia que é o facto de essas pessoas, de esses nossos irmãos, serem perseguidos pela justiça, e se considerados culpados serem sujeitos às penas que os tribunais assim entenderem. Não será isto uma vingança da sociedade?
Não nos vingamos, exercemos um mal menor. Vejamos, uma coisa são os factos, as penas. Essas são o que são. Depois podem ser consideradas vingança, ou não, consoante o que temos no coração. A pena é um instrumento dissuasor de atos futuros e o encarceramento previne que o prevaricador repita esses atos e pretende dar-lhe tempo para se arrepender. Mas também pode ser considerada uma vingança da sociedade. É, pois, do nosso coração que vem a atitude com que encaramos a pena de um condenado ou em prisão preventiva.
Outro assunto: um suspeito ou um condenado é nosso irmão, é um membro da nossa família. Nós não podemos cultivar o prazer de coscuvilharmos o seu crime cada dia que passa mais um bocadinho à medida que isso vai saindo na imprensa e até vão saindo livros com os pormenores sórdidos do pecado do nosso irmão. Basta-nos ter uma ideia do que se passa. Não devemos instalar-nos na lama. Isso não é cristão. Já é o (nosso) mal atraído pelo mal. E também não nos vingamos. Exercemos a justiça possível por meio de um mal menor.
Gonçalo Miller Guerra, sj