Um encontro no supermercado
– Olhe que eu sou muito religiosa, Sr. Padre! – exclamou a senhora do casaco verde tipo xaile. Sobretudo nesta altura da Quaresma!
– Sim, acredito que sim – disse eu. Peço desculpa se dei a impressão de pensar o contrário! Às vezes tenho um sentido de humor um bocado difícil de se entender…
– Não se preocupe, Sr. Padre. Eu, ao Padre Alves já o conheço bem, mas a si ainda não. Mas olhe, já que está a ter a amabilidade de conversar comigo, gostava de lhe pedir uma sugestão. Eu tenho três hipóteses de penitência para a Quaresma e não sei qual delas escolher.
Foi aí que eu percebi que não sairia tão cedo daquele supermercado. O relógio digital por cima do balcão da peixaria marcava 18h48. Já não conseguia chegar a horas para o Terço nem que virasse costas à senhora e desatasse a correr. Fiquei irritado comigo por lhe ter dado conversa. Já ali estávamos há mais de dez minutos. Foi ela que me viu, logo na entrada, junto às caixas. Falou do estado de saúde do P. Alves, de como ele já devia ter sido operado há mais tempo, da sorte que foi a senhora ter ido fazer a limpeza mais cedo naquele dia, poucos minutos depois de lhe ter dado aquela coisa má que o deixou inconsciente, etc. Ainda tentei despedir-me e começar a andar, mas ela disse que me acompanhava e pôs-se a caminhar comigo pelo supermercado fora, como se fôssemos grandes amigos recém reformados e tivéssemos combinado ir às compras juntos.
Um lado de mim estava irritado por estar ali, refém daquela conversa, mas o outro lado dizia-me que estava a fazer bem, que as pessoas são a coisa mais importante do mundo e que a última coisa que eu queria era dar a impressão de ser um padre apressado. Para mais, eu só ali ficaria durante dois ou três meses, enquanto o pároco não recuperasse plenamente da operação. Não me custaria muito ser um pastor atento e dedicado durante esse tempo.
Foi quando parámos na zona das bolachas e dos chocolates que a pergunta voltou:
– Gostava de lhe pedir uma sugestão. Eu tenho três hipóteses de penitência para a Quaresma e não sei qual delas escolher.
– Então quais são as suas hipóteses? – perguntei- -lhe eu, com alguma curiosidade.
– Isto é como se fosse uma confissão, não é? (acenei que sim com a cabeça). As minhas três hipóteses são: deixar de comer rebuçados peitorais, só ver telenovela dia sim dia não e andar sem meias.
Nessa altura, apareceu um rapaz por detrás da senhora, pediu-me silêncio com o dedo no nariz e agarrou-a pela cintura, levantando-a do chão.
– Avozinha querida! – exclamou ele. Mesmo a tempo de me comprar uma caixa de chocolates!! Não me apresenta o seu novo amiguinho?
– Respeito, rapaz! – disse ela com um misto de ternura e de firmeza. Este senhor é o novo padre da nossa igreja que veio substituir o Sr. P. Alves. Sr. Padre, este é o meu neto mais velho, um especialista em dar-me alegrias e tristezas. Agora, imagine, anunciou aos pais que ia estar dois meses sem ir à universidade para se dedicar ao desporto.
– Ah sim? – perguntei eu. E que desporto praticas?
– Natação de competição. Tive de tomar uma decisão: ou treinava a sério para as provas nacionais ou desistia da natação. Mas a minha avozinha querida não entende nada e acha que eu ando na má vida.
– Pois anda – disse ela. Sr. Padre, tem que me conseguir levar este rapaz de volta à Igreja. Só faz o que lhe apetece!
– E vocês, de que é que falavam?
– Olha – disse ela – um tema muito importante para ti. Falávamos de penitências.
– Sr. Padre, nesse capítulo eu sou campeão! Falo com a minha avó pelo menos uma vez por dia. Não acha que chega de sofrimento? Para quê deixar de comer chocolates, se já sofro tanto!
– Tu pensas que a vida é só prazer; não entendes que temos de sofrer. Não é, Sr. Padre?
Penitência
– Bem, eu acho que as penitências não se fazem para sofrermos. Fazem-se para melhorarmos. Para nós, cristãos, uma «penitência» não é algo que custa mas um exercício que ajuda a ficar melhor pessoa.
– Para mim, Sr. Padre, não acho que tenha sentido privar-me de coisas boas. Isso para mim é masoquismo. É por isso que eu não vou à Igreja.
– Olha que, se pensas assim, também não devias ir à piscina! Não imagino a quantidade de coisas boas de que tu te privas para poderes praticar natação de alta competição. Quantas horas treinas por dia?
– Durante o ano, treino duas horas de manhã (antes das aulas, das 6 às 8h) e duas horas à noite. Nestes dois meses, treino seis horas por dia na água mais uma hora de ginásio.
– Bem, nem imagino a quantidade de atividades em que não podes participar para poderes treinar tantas horas! E imagino que não possas comer uma data de coisas que sabem bem mas que engordam, que tenhas de ter cuidado com as saídas à noite nas vésperas das provas, etc. São as tuas “penitências” de nadador! Na Igreja é a mesma coisa: por vezes, abstemo-nos de coisas boas se isso nos ajuda a alcançar outras melhores. Sobretudo nesta altura do ano que é a Quaresma.
– Mas o que é que adianta não comer chocolates durante um mês? – perguntou ele.
– Bem, as penitências mais importantes são de outro tipo e consistem em deixar o que está mal. Por exemplo: se ando a enganar alguém, deixar de enganar. Ou tentar ser menos fútil. Ou visitar um doente. Mas mesmo não comer chocolates durante um tempo pode ter todo o sentido. Posso dar esse dinheiro a alguém necessitado. Ou, então, simplesmente, posso usar isso como um treino para ficar mais solidário e mais ligado ao essencial.
– Ligado ao essencial, como?
– O essencial da vida para nós são três coisas: sermos mais amigos de Deus, mais atirados para a vida e mais generosos para com os outros. Chamam-se Fé, Esperança e Caridade. A Quaresma é um tempo forte de nos treinarmos nestas coisas.
– Então e isso não é hipocrisia? Não deviam treinar o ano inteiro?
– E tu, não tiraste estes dois meses para praticar natação mais intensamente? Por que é que não fazes isso no ano inteiro? És hipócrita? Ou é apenas uma questão de bom senso?
– Estás a ver, netinho? – disse a senhora triunfante. Talvez não sejamos assim tão estúpidos como parece…
– Sim, mas os «jejuns» e as «abstenções»?
– Acho que querias dizer «abstinências», talvez – corrigi eu.
A avó olhou preocupada para ele, enquanto o rapaz dizia que sim com a cabeça.
Jejum e abstinência
– Bem, então vamos por partes. “Jejum” é não comer ou comer menos. Nós, na Quaresma, fazemos jejum em dois dias: na quarta-feira de cinzas e na sexta-feira santa. O jejum é uma prática habitual em muitas religiões. Tem como objetivo deixar mais espaço interior para as coisas essenciais.
– Eu percebo que isso se faça nas religiões de países subdesenvolvidos, mas na nossa civilização desenvolvida acho um disparate fazer as pessoas sofrer desnecessariamente, dizendo-lhes para não comer! Lá está: o masoquismo!
– E não achas disparate as pessoas fazerem enormes sacrifícios alimentares para perderem cinco quilos? E tu saíres da piscina estoirado só para conseguires acabar a prova em menos um segundo? E a quantidade de pessoas que acorda todos os dias uma hora mais cedo para correr, porque isso as faz mais saudáveis? Achas tudo isto também masoquismo?
– Bem, isso eu acho que são boas opções, coisas que valem a pena.
– E se houver sacrifícios que façam de ti uma pessoa mais generosa para com os outros, mais amiga de Deus e mais atirada para a vida, não achas que são boas opções, coisas que valem a pena?
– Bem, nesse caso talvez, mas não estou a ver é como se chega lá a partir dos jejuns.
– Cada vez que fazemos jejum estamos a recordar–nos do Essencial. Como se disséssemos: «Posso viver hoje sem almoçar, não posso é viver sem Deus; posso até passar um dia a pão e água, não posso é viver sem ser bom; etc.».
– E as abstinências?
– “Abstinência” significa não comer carne, “abster-se” de comer carne. Fazemos isto habitualmente nos dias de jejum e nas sextas-feiras da Quaresma.
– Pois, não podem comer carne mas podem comer lagosta, não é? “Para mim uma lagosta grelhada, sff, que estou na Quaresma!”.
– Bem, não comer carne não quer dizer que se coma peixe ou marisco. Antigamente, a carne era um luxo. Hoje, não. A prática mantém-se não como um sacrifício mas como um lembrete de que estamos na Quaresma.
– E esse lembrete de Quaresma serve para quê?
– Serve para intensificarmos os treinos quaresmais. Por exemplo: para nos lembrarmos de corrigir determinado defeito ou pecado, de estar mais atentos aos outros, etc.
– Estou a ver que as coisas têm evoluído. Quando eu andava na catequese tínhamos de nos confessar. Acho que tem mais lógica tentarmos corrigir os nossos defeitos sem nos confessarmos.
Confissão e perdão
Aí, a senhora do casaco verde não resistiu e desabafou num suspiro:
– Valha-me santa Engrácia! Ó filho, então tu não percebes que a confissão é precisamente para nos ajudar a corrigir os nossos defeitos?
– Então para isso não vou lá dizê-los ao Sr. Padre. Uso esse tempo para corrigir o dito defeito. Além disso, se nos queremos confessar, acho que o melhor é confessarmo-nos diretamente a Deus.
– Bem, vamos por partes! Temos sempre de nos confessar diretamente a Deus antes da confissão (quando nos preparamos para a confissão, através do chamado «exame de consciência»). Mas depois procuramos um padre. A ideia de haver intermediários no perdão veio de Jesus, que disse aos apóstolos: «aqueles a quem vocês perdoarem os pecados, ficarão perdoados». E percebe-se bem a vantagem, porque uma conversa com alguém de carne e osso pode ser uma ajuda muito grande à mudança. Mesmo que o padre não diga nada. Só a pessoa ter de verbalizar coisas já a faz ficar mais livre e mais preparada para mudar.
– Não estou a perceber. A confissão é para mudar? Sempre ouvi dizer que era para receber o perdão dos pecados.
– É a mesma coisa. O perdão é a Graça para recomeçarmos. É como se Deus nos dissesse na confissão: «Hoje é o primeiro dia do resto da tua vida»!
– Então e isso de mudar não é uma decisão pessoal?
– Mudar, recomeçar, exige uma decisão da pessoa. (É a essa decisão que se chama «arrependimento»). Mas não basta a decisão, precisamos da ajuda de Deus. Essa ajuda chama-se «perdão». O perdão de Deus tira a culpa do passado e faz mais do que isso: dá-nos força para o futuro.
– Então, por exemplo: eu roubei numa loja. Vou confessar-me e fico sem culpa. É muito mais prático do que ter que ir lá à loja pagar o que roubei.
– Calma! Se estamos verdadeiramente arrependidos, Deus tira a culpa do nosso coração mas temos de «restituir», fazer bem a quem fizemos mal, se isso não for impossível. Aliás, quando te arrependes verdadeiramente, sentes necessidade de fazer isso. Mas, mesmo que não sintas essa necessidade, tens de o fazer.
– E se eu não me sinto arrependido? Ou se me sinto só um bocadinho arrependido?
– O arrependimento não é um sentimento, é uma decisão. Em sentido cristão, o arrependimento é a decisão sincera de recomeçarmos melhor e de não voltarmos a fazer o que sabemos estar mal.
– E se eu não acho que uma coisa seja mal mas a Igreja diz que é? Vou confessar-me?
– Pelo menos, se és cristão, deves informar-te porque é que a tradição cristã acha isso mal. Tantas gerações, ao longo de 2000 anos, pode ser que tenham alguma sabedoria acumulada que tu não estejas a alcançar… Tu és cristão?
Oração
– Bem, agora o Sr. Padre fez-me xeque-mate!!
– Desculpa, se não quiseres não respondas.
– Não, eu respondo. Mas talvez a minha vovozinha querida não goste da minha resposta. Eu sou e não sou. Sou, porque acredito em Deus e falo com Ele todas as noites. E tento seguir os valores de Jesus. Não sou, porque não vou à Missa e não faço orações. Essa coisa da oração não pega comigo.
– Que entendes por oração?
– Então… rezas, não é? Pais-nossos, ave-marias e orações assim. Acho uma seca e cinco segundos depois já estou a pensar noutra coisa.
– Mas, para nós, não é isso: oração é dar tempo só a Deus, para estreitar a amizade com Ele e procurar a sua vontade para a pormos em prática na vida. Em certo sentido, toda a vida de um cristão – quando trabalhamos, quando saímos com amigos, etc. – deve ser «oração» porque deve ajudar a estreitar a amizade com Deus e a buscar a sua vontade. Mas a oração propriamente dita é quando eu deixo outras coisas para me encontrar com Deus. Por exemplo: tu tens uma mulher e em tudo o que fazes ela está presente. Mas depois há momentos em que estás só com ela.
– Sim, mas como é que isso se faz com Deus?
– Há imensas maneiras. A maneira mais simples é aquilo a que tu chamaste «rezas» e que se costuma chamar «oração vocal», porque a oração já está feita (um Pai-Nosso ou uma Ave-Maria, por exemplo) e nós só pomos a nossa voz. Mas podemos falar diretamente com Deus, tal como conversamos com um amigo (chama-se «colóquio») ou escrever-Lhe uma carta. Muitas pessoas rezam a partir de um texto da Bíblia, refletindo sobre ele para o aplicar na vida. Outras ficam simplesmente em silêncio, sentindo a presença de Deus. Há imensas maneiras.
Esmola
– Mas, no fundo, no fundo, o que interessa não é sermos bons para os outros? Não é para isso que serve a religião e a relação com Deus?
– Na minha opinião, isso que estás a dizer é tão disparatado como dizer que um dia, quando te casares, o amor entre ti e a tua mulher só serve para te ajudar a seres melhor para os filhos! Não! O amor a Deus vale por si mesmo, ainda que não me fizesse uma pessoa melhor. Aliás, Jesus disse que o primeiro mandamento era amar a Deus e que o segundo era amar o próximo. Mas claro que uma boa relação com Deus te faz logo seres muito melhor para com os outros. Por isso é que o segundo tipo de exercícios da Quaresma é a «esmola». Os outros são a «oração» e o «jejum».
– «Esmola» é uma palavra de que eu não gosto nada. Faz-me lembrar aquelas pessoas que atiram moedas para os pedintes sentados no passeio.
– Cuidado com julgares as intenções dos outros! Mas tens muita razão numa coisa: a esmola verdadeira não consiste em darmos coisas mas em darmo-nos a nós mesmos.
– Bem, Sr. Padre – disse a avó – eu sou muito religiosa mas agora tenho de me ir dar a mim mesma a fazer o jantar! E, como já está escuro, o meu netinho querido vai certamente querer levar-me a casa. Não é, amorzinho?
O rapaz fez uma cara de enjoado, a gozar com a avó.
– Vá, Rúben, agradece ao Sr. Padre.
– Boa Quaresma, Rúben.
Texto de Nuno Tovar de Lemos, sj
Ilustração de Francisca Cardoso
(in Mensageiro do Coração de Jesus, março 2017)