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Ser profeta nos dias que correm

Não é fácil ser profeta nos dias que correm, como não o era nos tempos de Amós, profeta quase à força. Como o próprio confessa, não era profeta, nem filho de profeta, nem tão pouco desejava sê-lo. Era apenas um pastor de gado e cultivador de sicómoros (Am 7, 10-17), trabalhando honestamente os seus campos para se alimentar a si e à família.

Estava bem consigo e de bem com a vida quando Deus o vem “desinquietar” e o manda profetizar a Israel, povo, aliás, a que pertencia. Honesto mas não parvo. Conhecia bem o mundo em que vivia e os terrenos “perigosos” que pisava, sob o ponto de vista social, político e religioso. E sabia que o melhor era ficar “caladinho”, porque, em palavras suas, “o prudente cala-se neste tempo” (Am 5, 13). Tempos, pois, arriscados para a Profecia! Ontem como hoje!

Mas tinha de profetizar porque o Senhor lho exigia. E a linguagem não era meiga: “Escutai bem, vós que espezinhais o pobre” e esperais impacientemente que termine o dia de Sábado “para podermos abrir os celeiros de trigo”, e vendê-lo falsificando as medidas (“medida mais pequena”) e as pesagens (“balanças falsas”). Falcatruas, portanto. “Compraremos os necessitados por dinheiro” (suborno e corrupção, diríamos hoje) e “Venderemos até as cascas do nosso trigo”. Estou a citar o capítulo oitavo do livro do profeta Amós.

Mas foi a venda de “até as cascas do nosso trigo” que me levou aos idos tempos da memória e a uma serração “algures” neste País onde a gente simples do lugar aproveitava a serradura para acender as lareiras com o agrado evidente do dono que assim lhe levava gratuitamente o entulho da serração, até ao dia em que a afluência era tal que pensou em começar a vender a dita serradura em sacos que os próprios traziam. E se assim o pensou, melhor o fez. Aquilo que era lixo e um favor que lhe faziam, passou a ser fonte de lucro. A lei da “oferta e da procura” bem aplicada e a correr às mil maravilhas. Ontem como hoje!

Estamos no séc. VIII a.C., numa sociedade dividida sob o ponto de vista social, com uma classe alta, proprietária e economicamente independente, vivendo à custa dos “humildes” (Am 5, 11; 8, 6) e que a administração da justiça reforçava e “legalizava”, pois, também ela estava nas mãos dos “poderosos”, os únicos que tinham voz e voto na matéria. Detendo nas suas mãos a administração da justiça, eram juízes em causa própria. A religião, por sua vez, “abençoava” a situação com grandes manifestações de vida religiosa, expressas em peregrinações (Am 4, 4; 5, 4) e celebrações grandiosas do Culto (Am 5, 21) no Santuário Real de Betel.

Era o sistema a funcionar com o poder político, judicial e religioso de mãos dadas, e nas mãos dos mesmos, enquanto os servos, os órfãos e as viúvas ficavam “ao Deus darᔠ(expressão popular interessante e muito significativa que traduzo como totalmente abandonados “à mercê de Deus”), não tendo a quem recorrer na defesa dos seus direitos. Peixes grandes a comer os peixes pequenos, pregaria o grande P. António Vieira, resumindo metaforicamente a situação do seu tempo e da forma que só ele sabia fazer. Mais uma vez, ontem como hoje!

Não sei se Amós obteve grandes resultados com a sua pregação, mas sei que incomodou pelo menos Amasias, sacerdote de Betel, que o denuncia ao rei (“Amós conspira contra ti”) e o quer escorraçar para fora de Israel: “Vai-te embora daqui, vidente. Foge para a terra de Judá. Aí ganharás o pão com as tuas profecias. Mas não continues a profetizar aqui em Betel, que é o santuário do rei e o templo do reino” (Am 7, 12-13). Como incomodou João Batista ao ponto de o “calarem” degolando-o. Como incomodou Cristo na sua subida a Jerusalém e entrou no Templo pondo de pernas para o ar as mesas dos cambistas por não gostar do que viu. Custou-Lhe caro. Como continuam a incomodar todos aqueles que, hoje, defendem o direito e a justiça.

Sei que a tentação é desistir. Por isso, não foi certamente por acaso que Cristo nos deixou a Parábola do Juiz Iníquo e da Viúva que perante a insistência desta levou aquele a fazer-lhe justiça. A citação diz tudo: “Embora eu não tema a Deus nem respeite os homens, contudo, já que esta viúva me incomoda, vou fazer-lhe justiça para que me deixe de vez e não volte a importunar-me” (Lc 18, 14-15). A viúva conseguiu.

O mundo não muda por si nem se muda de um dia para o outro. Vai mudando e vai-se mudando. É nesta mudança que todos somos corajosamente chamados a ser profetas nos dias que correm. “Calados” é que não!

 

A. da Costa Silva, sj

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