Num contexto como o destes últimos tempos, com atentados terroristas em território europeu, é compreensível que alguns sentimentos de apreensão e de insegurança possam surgir, face à entrada de estrangeiros nos nossos Países.
Ao mesmo tempo que notícias destes atentados na Europa surgiam ou aliás ainda antes disso notícias de uma violência em muito maior escala tinham porém chegado a nós: vindas de bem perto, da nossa vizinha Síria. Pouco tempo depois do desencadear da guerra civil nesse País, surgiam relatos dramáticos, de multidões de pessoas a tentarem atravessar o mar mediterrâneo, em inseguras e sobre-lotadas embarcações. O desfecho para parte dessas pessoas acabaria infelizmente por terminar em tragédia: em cada ano têm sido milhares (!) as pessoas que têm morrido, na tentativa para escapar a uma guerra brutal. As imagens de pessoas afogadas no mediterrâneo (incluindo crianças) são simplesmente intoleráveis, mais ainda no século XXI.
Se, como referi, é compreensível o sentimento de preocupação com a segurança nos Países europeus, por outro lado não me parece que num momento dramático como este seja possível virar simplesmente a cara, e ignorar o sofrimento dos refugiados (ou pretender que eles devam ir tentar procurar refúgio nalgum outro lugar).
Sendo por vezes olhados com desconfiança, na suspeição de que possam vir trazer o terrorismo, um dos aspectos irónicos neste drama dos refugiados é que, se estas pessoas se viram forçadas a abandonar o seu próprio País, foi precisamente para fugirem dos mesmos movimentos extremistas e violentos que nós receamos. É de notar, por outro lado, que a maioria dos terroristas que levaram a cabo os recentes atentados em Países europeus não vieram de fora, mas pelo contrário tinham já nascido em território europeu.
Não existirá então risco algum, se nos decidirmos a acolher algumas dessas pessoas? Isso é algo que ninguém poderá certamente garantir. Quem sabe se, em mil pessoas que desesperadamente procuram refúgio, não se encontrará alguma pessoa com intenções menos pacíficas? Porém, ainda que assim seja podemos perguntar: será então que todas as outras novecentas e noventa e nove pessoas inocentes, que procuram fugir da violência, terão então de pagar por isso? Será então esse um argumento para que fechemos as portas na Europa e não aceitemos receber nenhum daqueles que procuram escapar à guerra?
Bem explícito foi várias vezes Jesus ao dizer que o seu seguimento o amor a Deus e ao próximo envolve sempre também um preço a pagar. Porque dificilmente será possível fazer-se o bem ao próximo sem algum tipo de risco, sem que, de algum modo, tenhamos de sair da nossa zona de conforto.
Não está, infelizmente, na nossa mão podermos parar as guerras, causa e origem de todo este sofrimento. Algo porém, neste momento dramático e histórico, está na nossa mão fazer, tal como o Papa em diversas ocasiões tem repetido: podemos pelo menos procurar minorar alguns destes dramas pessoais. Recordemos que a primeira visita do Papa Francisco, pouco depois de ter sido eleito, foi precisamente à ilha de Lampedusa, chorar por aqueles que se afogaram no mediterrâneo, perseguidos por uns e ignorados por outros.
Surpreendente pela sua coragem e a sua generosidade foi a posição assumida no ano passado pela Chanceler da Alemanha, Ângela Merkel, ao oferecer lugar no seu País para nada menos que um milhão de refugiados (isto para além daqueles que a Alemanha tem já acolhido nos últimos anos). Apesar de, no final da segunda guerra mundial, terem também sido milhões os refugiados alemães, a Chanceler parece ter já tido de pagar um preço bem alto por este seu gesto, em termos eleitorais e de popularidade entre os seus. Já em alguns outros Países da Europa, por outro lado, o discurso oficial foi bem diferente do do acolhimento, sendo por vezes adoptadas posições populistas (ou até quase xenófobas). Isto como se, por si só, os muros pudessem verdadeiramente resolver os problemas, ou até conter os grandes movimentos de populações.
A prazo, parece de facto pouco provável que, num mundo dividido por muros, possa ser assegurada a segurança de quem quer que seja (quer de um lado, quer do outro dos muros). A verdade é que soluções que parecem mais fáceis e imediatas podem acabar por vir a contribuir para uma ainda maior polarização de tensões e ressentimentos no interior de um mundo que, queiramos ou não, se torna cada vez mais uma aldeia global. Como o Papa tem defendido, o que realmente precisamos não é de levantar muros (que, a prazo, acabam por nunca se revelar verdadeiras soluções para ninguém), mas sim de nos esforçarmos por estabelecer pontes.
De um ponto de vista legal, por outro lado, é de recordar que todos os Países europeus são signatários da convenção de Genebra, na qual se comprometem a conceder asilo e proteger os refugiados de guerra que cheguem ao seu território. Depois de terem começado a vir a público as notícias de milhares de refugiados afogados no mediterrâneo, a União Europeia chegou em 2015 finalmente a acordo para, teoricamente, acolher 160.000 refugiados (ou seja, não mais do que 0,03% da sua população total). Portugal que tantos emigrantes seus tem tido no estrangeiro comprometeu-se nessa mesma ocasião a acolher 4.500 refugiados (ou seja, 0,045% da sua população). Até hoje, porém, pouco mais de um décimo desses números terá efectivamente sido acolhido, quer em Portugal quer nos outros Países europeus. Apesar de estes números serem perfeitamente negligenciáveis para os nossos Países (e no meio da abundância em que vivemos no ocidente, comparados com o resto do mundo), a verdade é que alguns medos continuam por vezes a ser estimulados na opinião pública, alertando para uma alegada invasão que podemos sofrer por parte desses refugiados.
Curiosamente, um dos argumentos por vezes usado para evitar o acolhimento de refugiados tem sido o argumento religioso: em alegada defesa do cristianismo. Há quem defenda que, se acolheremos refugiados muçulmanos, isso contribuirá para a islamização da Europa. Custa a crer que, num momento de excepção como este, com uma guerra civil tão cruenta às nossas portas, seja em nome do cristianismo que se defenda um fechar de portas a quem tão desesperadamente precisa de acolhimento para sobreviver. Momentos de excepção pedem gestos também de excepção. De resto, como todos sabemos, os actos sempre valeram bem mais do que as palavras, e os gestos de acolhimento muito mais do que as indoutrinações incluindo na própria pregação do Evangelho. Se a nossa preocupação é verdadeiramente a proclamação da mensagem de Jesus, então que outra coisa podemos fazer senão testemunhar a nossa humanidade para estes nossos semelhantes que tão necessitados se encontram agora? Se estes nossos irmãos um dia nos puderem dizer Era peregrino e acolheste-me (Mt 25), isso sim será então sinal que um testemunho verdadeiramente cristão foi dado neste momento histórico e particularmente difícil para o povo sírio.
Texto: Luís Ferreira do Amaral, sj
Fotos: JRS – Internacional