Envelhecer no contexto de uma família alargada, com filhos e netos na mesma casa ou perto, deixou de ser uma realidade para muitas pessoas. Os contextos e ritmos de vida mudaram e cuidar dos pais/avós quando ficam velhinhos é um enorme desafio para o qual muitas famílias precisam de ajuda. Maria José da Silveira Núncio é doutorada em Sociologia, professora universitária, mediadora e coach familiar. É autora de vários livros, entre os quais Os meus pais estão a envelhecer – Como apoiar no dia a dia. É especialista na área da família e acredita que a satisfação e a realização individuais e familiares são fáceis de conseguir desde que se clarifiquem metas e estratégias a alcançar.
O envelhecer, muitas vezes com doenças associadas, devia ser planeado com antecedência?
O envelhecimento deveria ser planeado por todos nós e, claramente, pelas famílias. Sabemos que as exigências da atualidade não facilitam a presença, o cuidado e o acompanhamento que gostaríamos de nos dar mutuamente em família. Aumentaram as distâncias, sobrecarregaram-se os horários e as pressões, aos mais variados níveis, tornaram-se mais agudas.
Se associarmos estas realidades com o facto de vivermos cada vez mais anos, o que se reflete, em muitos casos, em perda de autonomia, é fundamental que se encare o envelhecimento como uma condição de natureza inevitável, que acarreta determinadas consequências, mais ou menos previsíveis, para as quais deveremos preparar-nos, não apenas individualmente, mas colaborativamente, com a família e, até, com amigos próximos.
A questão é que, paradoxalmente, o envelhecimento ainda continua a constituir-se como uma espécie de tabu, um «elefante no meio da sala», que tentamos ignorar, não apenas porque se lhe associa uma conotação de desvalorização social e de decadência de capacidades e faculdades individuais, mas também porque remete para uma imagem de finitude que é dolorosa, em termos emocionais. É urgente a mudança de mentalidades, tanto no plano da «naturalização» do envelhecimento (e aqui há uma responsabilidade da sociedade como um todo), quanto no plano do enfrentamento realista dos cenários previsíveis de futuro, essencial à preparação desses mesmos cenários.
A vontade dos nossos pais deve ser sempre respeitada, mesmo quando sabemos que o que eles pretendem não é o melhor e mais seguro para eles?
O ideal é que as vontades sejam respeitadas, mas apenas na medida em que isso é possível, considerando a realidade e as circunstâncias concretas de cada família (e aqui há que ter em conta múltiplos fatores, de ordem material, emocional, relacional, de qualidade de vida e de segurança). E é fundamental a noção de que o envelhecimento é um processo evolutivo, que se compõe de diferentes fases, cujas necessidades são distintas e são, elas próprias, evolutivas. Daí a necessidade de estabelecer, com antecedência, planificando, quais as medidas e as respostas que devem ser adotadas em cada fase, isto é, definindo quais as situações em que determinada solução se torna inviável e se tem de optar por uma outra solução, ainda que não seja a ideal, ou a preferida. Acima de tudo, há que ponderar as vantagens de não contrariar as vontades dos nossos pais, comparativamente aos riscos implicados nessa opção. Em qualquer dos casos, é importante que se justifique e debata com os nossos pais as razões pelas quais teremos de contrariar as suas vontades. Como pode suceder que as suas faculdades se encontrem diminuídas, se tivermos abordado e discutido este tema com antecedência, isso aliviará os sentimentos de culpa e o desconforto que, de forma quase inevitável, acabaremos por sentir no momento em que formos «obrigados» a contrariar as suas vontades.
Há muitos casos de filhos que têm um trabalho a tempo inteiro, filhos ainda pequenos e pais dependentes. Como é que estas famílias se podem organizar?
Este é, aliás, o maior problema – e o mais comum – das famílias portuguesas. Cada vez mais vivemos uma realidade de uma geração «ensanduichada» entre a necessidade de acompanhar os mais novos e cuidar dos mais velhos (o atraso na idade do nascimento do primeiro filho, faz com que, em muitas famílias, haja filhos adolescentes – ainda a precisar de acompanhamento – e pais a começar a necessitar de cuidados e de acompanhamento em atividades da vida diária. Necessariamente, a organização dos tempos é um elemento fundamental, mas com realismo, há que ter consciência que há muitos outros fatores com impacto nesta capacidade organizativa e que podem, mesmo, impedi-la. Esses fatores têm a ver, desde logo, com a capacidade económica das famílias, mas também com as dinâmicas relacionais da própria família que, naturalmente, são distintas e diversificadas. Neste sentido, a única possibilidade é a de tentar fazer essa organização e gestão dos tempos de acordo com a nossa realidade concreta, sem procurar fazer igual aos outros e sendo capaz de reconhecer que falharemos muitas vezes e que essas falhas não são fruto de incompetência, de descuido ou de desamor, mas, apenas, dos limites da nossa própria circunstância.
Os netos devem acompanhar os avós nas suas necessidades e fragilidades, mesmo quando são pequeninos?
Na minha opinião, sim. Desde logo, porque isso permite a tal mudança de mentalidades e a «naturalização» do envelhecimento e, depois, porque os avós têm um contributo essencial para a definição da identidade individual e familiar, pois são repositórios vivos dessa mesma identidade e, nesse sentido, desempenham um papel fundamental na perceção de sentido e de continuidade. Além disso, ao acompanharem essas fragilidades e necessidades, apoiando, estamos também a promover, nos nossos filhos, a capacidade empática e a solidariedade.
A questão financeira também se coloca muitas vezes. Um lar de qualidade custa muito dinheiro; ter alguém em casa a prestar apoio também é muito caro e difícil de se conseguir. Deveria haver respostas mais adequadas a estas pessoas por parte do Estado?
Sim, a capacidade de acesso a equipamentos de qualidade e compatíveis com o rendimento médio dos portugueses, especialmente, com o valor médio das pensões e reformas é uma das maiores lacunas que vivemos em Portugal e que, por vezes, leva a que tenhamos pessoas mais velhas a viver o seu fim de vida em condições absolutamente indignas e degradantes. Considerando que o envelhecimento nos diz respeito a todos, esta é uma das áreas relativamente às quais é fundamental maior exigência por parte da sociedade e maior proatividade por parte do Estado. Até porque, repito, trata-se de uma matéria de dignidade e de respeito por direitos humanos fundamentais.
Os cuidadores não deviam ter mais apoio por parte do Estado e da sociedade em geral?
Sim, apesar da existência do enquadramento legal do Estatuto do Cuidador, sabemos que fica bastante aquém daquelas que são as necessidades reais e as circunstâncias reais de quem cuida. Todavia, acho que esta questão deveria ser tratada no âmbito mais abrangente de uma reforma das políticas de apoio e promoção das famílias, em Portugal, uma área que, tradicionalmente, tem sido pouco valorizada e em que as medidas, além de insuficientes, pecam pelo seu carácter avulso e, com frequência, desconexo e incoerente.
Os lares de idosos são uma resposta aceitável? Durante a pandemia, ficaram bem evidentes as fragilidades de muitas destas estruturas. O funcionamento e organização não deviam ser repensados?
As generalizações são perigosas, nesta como noutras matérias. Há Estruturas Residenciais para Pessoas Idosas excelentes, com todas as condições (materiais e humanas) e não me refiro, sequer, a equipamentos de luxo. E depois há outras sem quaisquer condições (nem materiais nem de recursos humanos), mas aí o Estado tem de ter um papel mais interventivo em matéria de rigor na fiscalização e na punição de incumprimentos. Claro que a institucionalização deverá ser a última opção, mas há que ter consciência em que o envelhecimento em casa e na família já não é possível, não apenas pela questão do acompanhamento, mas, sobretudo, por razões de natureza logística de impossibilidade de adaptação das casas a situações de grandes incapacidades.
Como lidar com a questão dos afetos, sobretudo no atual contexto de pandemia? Em casa, num lar ou num hospital?
Este é, se calhar, uma das faces emocionalmente mais pesadas da pandemia. A única forma, será tentar colmatar a ausência física com os telefonemas frequentes e com o recurso a outras soluções de comunicação à distância, mas, obviamente, isto não é aplicável a toda a gente, nem a todas as situações. Trata-se de, com os recursos possíveis e em cada situação concreta, tentar deixar claro que a distância física não significa esquecimento ou falta de amor. Todavia, há que ser realista e perceber que, nas idades mais avançadas, o tempo adquire um outro significado e, por isso, a dor causada pelo distanciamento é maior, porque há uma maior percepção de irrecuperabilidade relativamente ao que se perdeu.
Falar com os nossos pais sobre assuntos relacionados com o bem estar deles, a gestão de rotinas e outros assuntos nem sempre é fácil; uns pela atenção que requerem, outros pelas exigências em relação a comportamentos e atitudes, outros ainda pela apatia. Como se gere esta comunicação com eles?
A comunicação deve ser aberta e franca, sem tabus, verdadeira, realista e, sobretudo, sem imposições nem infantilizações dos mais velhos. Uma fórmula que me parece segura é a de, antes de falarmos, pensarmos como gostaríamos que falassem connosco, quando chegarmos à sua idade e nos encontrarmos em situação semelhante. É um simples exercício de empatia, que tornará a comunicação muito mais adequada.
Imagem de Beth Lowell por Pixabay
*A entrevista encontra-se também disponível na edição de julho da revista Mensageiro do Coração de Jesus