Peregrino veio, peregrino partiu. Falo evidentemente do Papa Francisco, que acaba de nos deixar, transportado por um avião da TAP, batizado (dizem-me) com o nome do grande e célebre pintor português (1475-1542) “Grão Vasco” do tempo dos Descobrimentos. Estamos na história a fazer-se nas “Terras de Santa Maria”.
Veio a Fátima para celebrar o Centenário das Aparições de Nossa Senhora aos Três Pastorinhos, mas insistiu que o fazia como peregrino com peregrinos numa Igreja que deseja ver como peregrina a sair “para fora”. Fez-se Peregrino de Nossa Senhora de Fátima, precisamente onde a história de Deus se cruza mais uma vez com a história de Portugal. Grão Vasco leva um pouco dessa história ao levá-lo de regresso a Roma para, a partir do centro da cristandade, continuar a sua peregrinação por outros mundos, outras terras e, já agora, por outros mares “ainda por navegar” e que vão para além de nós, do nosso mundo, dos nossos mares, da nossa história e até das nossas histórias.
É para esse “para além de nós” que o Papa Francisco nos convidou a ir. Chamou-lhe “as periferias” onde habitam outras terras com histórias de clamores silenciados mas que bradam aos céus. Naquele pobre, sentado e de mão estendida há um grito (“Ajuda-me”); naquele sem-abrigo deitado entre cartões há um pedido (“Acolhe-me”); naquele toxicodependente há uma voz carente (“Ama-me”), e por aí adiante.
Estamos no mundo dos pobres e abandonados, dos presos e desempregados, dos doentes e das pessoas com deficiências; estamos no mundo das carências de toda a ordem, sejam elas económicas ou sociais, morais ou espirituais; estamos no mundo do vazio (“Era do Vazio” alguém lhe chamou), onde aparentemente se tem tudo e não se tem nada, nem sequer a voz popular do “Quem tem uma mãe, tem tudo; quem não tem mãe, não tem nada”. Por isso, gostei de ouvir a voz comovida e convicta do Papa diante daquele mar de gente no recinto do Santuário: “Temos Mãe, Temos Mãe”.
Não era preciso dizer mais nada, nem era preciso falar de Esperança e Paz. Bastava deixar-lhe o rosto a falar de ternura com os gestos a “tocarem” nas pessoas enquanto o carinho e a misericórdia lhes tocavam as vidas quais toques de Deus a acontecer em pinturas de luzes e sombras tão bem espelhadas no sol e nas nuvens do momento. Bastava o silêncio da oração prolongada para recolher tudo isso. E deixar-se ficar assim no colo da Mãe sem falar, apenas escutando e sem pensar, apenas sentindo. É nesse silêncio que por vezes acontece o milagre da Plenitude da Graça a encher os nossos vazios interiores com o Sol bailando em cântico de alegria. Mesmo sem o sabermos explicar.
E partiu em jeito de despedida. Da partida de Fátima retenho o momento do Adeus do Papa com o lenço branco a abanar enquanto o olhar seguia a andor que levava Maria ao seu “recolhimento” na capelinha onde a devoção popular a “acolheu”. Da base aérea de Monte Real guardo a sua imagem, já na porta do avião, com a pasta preta na mão esquerda caída ao longo do corpo, enquanto a mão direita fazia o gesto comum e simples de despedida, que envia embrulhado no sorriso do olhar para o Presidente da República e o Bispo de Leiria-Fátima, nossos representantes. Espero que nos entreguem o gesto e o sorriso. E partiu como veio. Dizem que partiu contente. E nós contentes ficámos. Contentes e agradecidos.
Texto: A. da Costa Silva, sj
Imagem: Ricardo Perna/Família Cristã