O Sufismo é uma das mais belas tradições espirituais da Humanidade. Nasceu no seio do Islão, e as suas origens remontam a Maomé. Transmitida de mestre para discípulo e presente hoje em numerosas comunidades, a vivência do Sufismo reside no aprofundamento espiritual dos ensinamentos do Islão, mediante símbolos, contos e narrativas. Por exemplo, para o Sufismo a guerra santa (al-jihad al-akbar) é a luta contra o nosso próprio ego, contra os impulsos egoístas que nos habitam e que impedem a nossa aproximação de Deus; só depois vem a luta contra a injustiça e a opressão, a al-jihad al-asghar (guerra menor).
Por aqui podemos compreender como, na realidade, o Islão é uma religião e um fenómeno complexo. Atualmente, a versão que melhor conhecemos (que as notícias mais divulgam) é a do chamado Wahhabismo (de Wahhab, líder religioso do século XVIII). O Wahhabismo teve a sua origem na atual Arábia Saudita, e é a partir deste país (aliado do mundo ocidental) que se divulga por todo o mundo islâmico através de um simples fator: muitos dos líderes religiosos islâmicos formam-se na Arábia Saudita. O Wahhabismo é uma visão conservadora do Islão, aliando-se à insatisfação vivida pelas populações árabes do Médio Oriente e norte de África (da colonização europeia dos séculos XIX e XX às guerras do Golfo e do Afeganistão, passando pela criação do estado de Israel e às disputas com as populações palestinianas). Daqui que o Islão nos surja como uma realidade violenta (a sua expansão inicial deveu-se a um misto de conversão religiosa e de violência militar, um pouco como os países europeus fizeram na América Latina e África entre os séculos XVI e XIX); mas, no seu interior, o Islão possui uma riqueza e diversidade espiritual de que o Sufismo é o melhor exemplo.
Entre as parábolas e contos que nos chegam do Sufismo, encontramos uma belíssima história sobre um diálogo entre o profeta Moisés e um pastor. O tema da história é a oração e as fórmulas adequadas para falar com Deus. A sua autoria é de Jalaluddin Rumi, que viveu na Pérsia no século XIII.
Aqui fica uma breve versão deste conto: que, neste ano de 2017, as palavras para a oração não deixem de brotar do nosso coração; e que todas as mulheres e todos os homens não deixem de encontrar, nas suas tradições espirituais, a simplicidade que conduz à Paz.
Havia nas planícies da Pérsia um pastor de coração simples e puro. Não tinha estudos, nem conhecia os ensinamentos da religião, mas confiava em Deus. Certo dia, elevou esta prece:
«Oh querido e amado Senhor, onde estás Tu, Tu a quem eu dediquei a minha vida? Onde estás, Tu de quem eu sou apenas um humilde servo? Oh Deus, para quem eu vivo e respiro, por cuja graça existo…»
Nesse momento, Moisés ia a passar por perto, e escutou esta oração. Decidiu admoestar o pastor, dizendo-lhe:
«Como te atreves a falar a Deus dessa maneira? O que dizes são blasfémias. Será Deus Todo-Poderoso um simples ser humano? Usa sandálias e meias? É Ele uma criança por criar que precisa de leite para crescer? Não, não é! Deus é completo em si mesmo e de nada necessita».
O pastor retirou-se cabisbaixo: na sua simplicidade, não entendia o motivo pelo qual o profeta se indignou com as suas palavras, mas aceitou a sua autoridade. Moisés prosseguiu o seu caminho, orgulhoso por ter corrigido uma alma extraviada. Mas o Todo-Poderoso falou-lhe:
«Por que te vieste meter entre Nós e o nosso leal servo? Por que separaste o amante do seu Bem-Amado? Nós enviamos-te ao mundo para unires um ao outro e não para romper o laço que os ata.
Recorda-te que no Amor as palavras são apenas a casca exterior e nada significam. Nós não damos atenção à beleza da frase ou ao rigor da sentença. Nós apenas olhamos a realidade interior do coração. Assim conhecemos a sinceridade das nossas criaturas, mesmo quando as suas palavras são desajeitadas. Pois aqueles que ardem no fogo do Amor proferem também palavras de fogo».
Moisés compreendeu o seu erro, e partiu à procura do pastor.
Rui Vasconcelos
Nota: Esta é uma versão abreviada do conto Musa e o Pastor, publicado no livro de M. Bayat, M. Ali Jamnia,
Contos do País dos Sufis (trad. José D. Morais) Lisboa: 2002.