Há largos decénios que a escravatura foi, oficial e universalmente, banida, mas, por paradoxal desgraça, continua a haver escravos e escravas, crianças, jovens e adultos, nos cinco continentes. Mais: nos nossos dias de gente pretensamente culta e civilizada, que vive a usar tecnologias avançadas, novas escravaturas têm surgido, apresentando se muitas vezes com a desvergonha de um serviço social.
Falo de maquiavélicas formas de desprezo do próximo, em que se rouba a dignidade a seres humanos iguais a nós, reduzindo pessoas a objectos de uso e de abuso. Refiro-me também a prisioneiros por iniciativa própria, verdugos de si mesmos, embora muitas vezes nas causas desta auto-escravização estejam atitudes de outras pessoas. Da lista, dramaticamente extensa e grave, aponto estas escravaturas da actualidade: a prostituição e a pedofilia, o alcoolismo e as drogas, a submissão a ritmos e horários de trabalho excessivos, os fundamentalismos ideológicos e religiosos, a exploração de trabalhadores pela falta de um salário minimamente justo, as crianças forçadas a trabalhos de gente adulta e a serem soldados
Vem esta reflexão a propósito do tema do «Dia Mundial da Paz», que o Papa Francisco nos propôs para começar bem o presente ano. «Já não escravos, mas irmãos». É uma expressão com raízes no apóstolo Paulo, que viveu no tempo em que a escravatura florescia com direitos legais. Afirmá-lo hoje é como gritar profeticamente: Ultrapassemos o primitivismo de tempos passados, em que era normal olhar para alguém como um inferior desprezível, desprovido de direitos e só com deveres. Ninguém pode considerar o seu próximo como menos humano do que si mesmo. Só o relacionamento fraterno é verdadeiramente humano e só ele corresponde a quem acredita em Deus como Pai de todos. Urge fraternizar as relações humanas.
Para além das escravaturas, mais ou menos explícitas e oficiais, como a prostituição, a pedofilia e as drogas, importa libertar nos e sermos libertadores de atitudes que contêm vírus de escravização. Apresento três exemplos: o complexo de superioridade, em que alguém se julga superior a outros, como se os haveres ou os títulos sejam razão para um indivíduo ser mais que outrem; o carreirismo, julgando que se pode subir calcando os outros, instrumentalizando as relações de fraternidade para aumentar o pedestal da própria importância; as sujeições e as dependências afectivas, em que alguém se torna patrão afectivo de outrem ou se deixa submeter infantilmente, asfixiando se a liberdade, condição essencial para haver amor.
Há séculos, foi fundada uma ordem religiosa para a redenção dos cativos. Propunha se sobretudo libertar os escravos, reféns de guerras. Em sentido amplo, todos devemos pertencer a esta ordem para libertar os cativos das escravaturas modernas. Deus, que nos criou livres, espera de nós que sejamos libertadores de todas as escravidões.
Manuel Morujão, sj