Na sequência do artigo anterior, partilho hoje mais algumas histórias que fui ouvindo em Lesbos e que me continuam na memória e no coração, lembrando-me das Graças que vou recebendo e do quão responsável sou por aqueles que são menos afortunados do que eu.
A primeira é a do B, militar da República Democrática do Congo. Num dos protestos populares contra as forças governamentais, B e os seus companheiros foram incitados a disparar sobre a multidão que se revoltava. B recusou-se a fazê-lo, começando ao invés a disparar para o ar. No final da ocorrência, foi chamado pelo seu comandante que o acusou de ter desperdiçado balas, sendo torturado durante uma tarde como castigo. Desde aí, começou uma série de perseguições e torturas que o obrigaram a fugir do seu país. Para trás deixou a esposa e o filho de 5 anos. Fala com a família ao telefone cerca de 2/3 vezes por semana. Sabe que estão seguros de momento, mas também sabe que não poderá voltar tão cedo ao seu país para rever a sua família. Resta esperar que se possam juntar num lugar seguro, que provavelmente não será a Grécia.
A segunda é da F e do A, um casal afegão. F e A tinham uma boa vida no Afeganistão, com um trabalho estável e perspetivas de aumentar a família. Depois de algum tempo casados, F engravidou. Um dia, quando se encontravam na cidade, foram apanhados, juntamente com o pai de A, no meio de um ataque terrorista. A teve então de tomar a decisão difícil de fugir com a sua mulher, grávida de 5 meses, esperando que, por consideração à sua idade, o seu pai fosse poupado. Infelizmente, sobrestimou a misericórdia alheia e acabou por encontrar apenas o corpo do seu pai já sem vida, depois de ter sido alvejado. Como se tal não bastasse, daí a uns dias o casal veio a sofrer um aborto natural, provavelmente associado ao stress envolvido neste episódio. Perante o aumento da insegurança no país, a mãe de A aconselhou a família a vir para a Europa. Para tal, tiveram de vender tudo o que tinham no Afeganistão, desde casa a carro, passando por roupa ou joias. Com toda a sua vida deixada para trás, tentam agora recomeçar. Dizem que não importa qual seja o país, só gostariam de poder arranjar trabalho e encontrar forma de F continuar os seus estudos. Estava no primeiro ano do curso de Medicina no Afeganistão. Quando lhes perguntei se pensam em ter filhos, dizem que não por agora. A ferida de uma gravidez interrompida ainda está bem viva.
A terceira história é a da L. Proveniente dos Camarões, viu a sua mãe morrer em 2012 e o seu pai em 2016. Órfã de pai e mãe, foi viver com o tio. Aquele que devia acolhê-la e protegê-la começou a agredi-la física e sexualmente. Como se não bastasse violá-la individualmente, convidava alguns amigos que também dela abusavam. Durante este tempo, várias vezes teve ideias suicidas e apenas não as consumou pela dissuasão de um padre a quem confessou os sofrimentos de que era vítima. O mesmo sacerdote aconselhou-a a vir para a Europa, onde poderia estar mais segura. Há cerca de um mês em Lesbos, continua com ideias suicidas. Com pouca capacidade de dar resposta a nível farmacológico, procurámos incentivá-la a iniciar algumas atividades de alívio de stress e controlo de tensão, de forma a conseguir aumentar a sua capacidade de resiliência. Com uma expressão facial pesada, reflexo de uma humanidade profundamente ferida, ia assentindo às propostas. Não mais a voltei a ver.
Muitas mais histórias como estas poderia aqui contar. O nível de brutalidade por que muitas das pessoas que conheci passaram é indescritível. Tento partilhá-lo para que nos possamos tentar colocar no seu lugar e perceber o porquê de arriscarem a vinda para a Europa.
Não tenho dúvidas que Cristo continua a ser torturado e morto a cada dia, na pessoa daqueles que sofrem estas atrocidades. Confio que é com base no acolhimento que lhe(s) damos que se joga a nossa Humanidade e o nosso Caminho de Santidade. Mais do que não fazer o Mal, não queiramos perder a oportunidade de fazer o Bem!
António Lourenço