Um país com todos os problemas resolvidos, a mulher (Escrevo esta nota no Dia Mundial da Mulher) finalmente livre e senhora do seu corpo, os casamentos gay legalmente reconhecidos e o direito à adoção de filhos conquistado, bem pode respirar a plenos pulmões os ares da felicidade do bem viver. Custou, mas foi. Pode, pois, começar a tratar do ingente problema do futuro, que é o bem morrer (Eu-tanásia). Imagino desde já filas e filas de portugueses a baterem à porta dos médicos, pedindo-lhes a mercê e a grande graça de bem morrer. Felicidade plena: viver bem e morrer melhor! País na linha da frente e modelo de modernidade! Perante tal novidade, político ou jornalista que se preze põe rosto sério de pensador para concluir que a eutanásia é assunto urgente e merecedor de discussão serena e profunda.
E porque não morrer feliz e com música de fundo? Pelo menos isto é o mínimo que se pode exigir. Em nome da liberdade, da dignidade e da decência, claro está! Com tantos meios técnicos ao dispor da medicina, dispensamos perfeitamente a dor e os sofrimentos desumanos e, como último recurso, se necessário, até dispensamos a própria vida. Morrer sim, já que tem de ser, mas ao menos morremos livre e dignamente, para não dizer felizes e contentes.
Não sei o que vai acontecer neste país das maravilhas, mas temo pelos velhos para já abandonados e depois descartados, pelos doentes mentais que, não podendo decidir, outros decidirão por eles, e pelos doentes profundos ou nascidos com grandes e arrepiantes deformações físicas a quem, por compaixão, se dá o golpe de misericórdia.
No caso do aborto, a teoria da hominização decidiu que a criança dentro da barriga da mãe não era ainda vida humana antes das oito semanas (seria um queijo, imagino eu!), depois passou para as 12 e presentemente estamos, creio, nas 16 semanas; agora com a eutanásia, suspeito que muito em breve surgirão teorias justificativas e humanizantes para ir alargando o conceito de morte assistida, que mais não seja com o argumento de que já não é bem pessoa, ou, pelo menos, pessoa com vida digna de ser chamada humana. Será até uma questão de humanidade e amor ao próximo, li eu com estes olhos que a terra há de comer, em jornal supostamente sério. No aborto porque ainda não, na eutanásia porque já não.
E lá vamos cantando e rindo a caminho da libertação de preconceitos retrógrados em que a vida é tida por sagrada e inviolável e, como tal, não posso atentar contra ela, mesmo que seja a minha, simplesmente porque não sou seu dono. Coisa de religião, dizem alguns. Que assim seja ou não seja, parece-me coisa de pouca monta neste momento. Penso mais nas suas consequências. Basta lembrar como em pleno século XX, nesta dita civilização ocidental, em nome da pureza da raça, nasceram os crematórios nazis e como em nome de uma sociedade sem classes se criaram os gulags com as suas intermináveis barbaridades. Temo que, em nome de um paraíso na terra, se esteja lentamente a criar um inferno algures.
Valha-nos, ao menos, o Deus da Misericórdia, porque da racionalidade humana, quando não pautada por princípios, pouco há a esperar. Desconfio mesmo que ela própria seja objeto de eutanásia, se é que não o foi já. Por mim já me contentava com um pouco de bom senso.
A. da Costa Siva, sj