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Eu, Doente Mental

O jornal «Público» do dia 2 de maio passado traz uma notícia muito triste: [em Portugal] «muitas pessoas com doenças mentais não se tratam por vergonha». A afirmação é de José Caldas de Almeida, psiquiatra e ex-Coordenador da Saúde Mental.

A doença mental é uma doença vergonhosa, incapacitante e inibidora de progressão em carreiras profissionais. Daí que as pessoas a tentem esconder, mesmo quando se tratam. Ninguém gosta de ser apelidado de «maluco», que é o que a maior parte das pessoas diz. Epítetos mais benignos como o célebre «está lelé da cuca», «não tem os parafusos todos», «é doido varrido», «tem um parafuso a menos», «está completamente pifado», «não bate certo», etc., se se podem dizer sem grande prejuízo acerca de alguém que tem uma excentricidade, se essa pessoa é efetivamente um doente mental, magoam profundamente.

O doente mental é sempre olhado de cima para baixo. É olhado como uma pessoa esquisita, às vezes com comportamentos estranhos. O mesmo não se passa se uma pessoa, por exemplo, não tem um rim ou tem o colesterol elevado. Entendemos isso como uma coisa que pode acontecer a toda a gente, enquanto a doença mental faz do seu portador um ser inferior e nunca nos pode acontecer a nós, que estamos de fora. O doente mental é um ser que, muitas vezes, se considera a si mesmo inferior e por isso esconde dos outros a suposta causa da sua inferioridade. Ou esconde essa inferioridade de si mesmo não se tratando, uma vez que tratar-se seria o assumir a sua doença.

Se hoje em dia já é bastante comum aparecerem pessoas com depressão e – penso – isso já não é causa de vergonha, já o ser-se bipolar, esquizofrénico, ter uma psicose, ter uma fobia excêntrica (não é o ter medo de viajar de avião ou de elevador) são coisas que nos fazem ser olhados com uma certa estranheza (e algum receio?) mesmo se bem medicados.

Não é que isto aconteça no dia a dia. No dia a dia, o doente mental é bem tratado. Mas há de chegar o dia fatal em que ele percebe que não é igual, que ser um doente mental é muito mais incapacitante do que não ter o tal rim. É quando lhe fazem sentir que aquele comportamento, que noutra pessoa seria uma excentricidade, um ataque de mau génio, uma «gaffe», uma atitude mais eufórica, nele, vem da sua doença mental, e que ele talvez tenha de fazer uma visita ao médico. Ou pura e simplesmente lhe dizem na cara que ele é maluco. (Claro que ninguém tinha intenção de ofender. Longe disso.) O doente mental está sempre numa situação de inferioridade perante os pares. Isto já para não falar que, em muitos sítios, os lugares de chefia passam a ser-nos imediatamente vedados. O leitor sentir-se-ia descansado se lhe dissessem que o seu chefe era um doente mental? As empresas não sentem.

Tenho para mim que uma maneira de tornar a doença mental mais aceitável é sairmos do armário e torná-la uma doença estatisticamente comum em termos de visibilidade. Ora isso tem de começar por nós, os que não temos nada a perder.

Eu sou bipolar e tenho alguns traços psicóticos. Graças ao meu (muito bom) psiquiatra, os sintomas quase não se manifestam. Digo que sou um doente mental e não tenho muito a perder com isso. Não tenho carreira para progredir e não sinto que me olhem de cima para baixo. Só tenho tido ajudas da minha comunidade religiosa e compreensão da minha família. Também eu tive muita vergonha da primeira vez que fui a uma consulta de psiquiatria. Era uma consulta externa do serviço de psiquiatria de um hospital. E pensei que na sala de espera ia encontrar pessoas estranhas, a fazer momices e imaginava-me no meio delas. Depois vi que eram pessoas como eu. Mas o «ir» foi muito difícil e humilhante.

Escrevi este artigo, que é uma gota de água no oceano, para ser um contributo para que a doença mental em Portugal seja vista com mais naturalidade e mais caridade por, pelo menos, mais uma pessoa: um leitor deste blogue.

 

Gonçalo Miller Guerra, sj

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