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De uma caridade cega a uma caridade pensada

Este hino de S. Paulo é um bonito hino à caridade, mas se olharmos para ele sem um olhar romântico notaremos que nos põe alguns problemas. E com isso, temos que tomar uma decisão. Ou decidimos que o hino fica bem pendurado, muito quietinho, nas paredes do nosso sentimentalismo ou, se o quisermos cumprir, teremos que resolver vários problemas.

O hino tem alguns versículos que me parecem problemáticos:

O amor é paciente,

O amor é prestável,

Não é invejoso,

Não é arrogante nem orgulhoso,

Nada faz de inconveniente,

Não procura o seu próprio interesse,

Não se irrita nem guarda ressentimento.

Não se alegra com a injustiça,

Mas rejubila com a verdade.

Tudo desculpa, tudo crê,

Tudo espera, tudo suporta. (1 Cor 13, 4 – 8)

É importante que os interpretemos à luz do evangelho e não à letra.

Comecemos por este versículo: “o amor é paciente”. Claro que o amor é paciente mas não é paciente sempre. Muitas muitas pessoas acham que a impaciência é pecado. A impaciência é um sentimento que só não sente quem vive numa espécie de nirvana. Há pessoas que chegando a determinado grau da sua carreira já ninguém as faz esperar. São elas que fazem esperar. Que quando vão ao médico são atendidas ao minuto, que em casa lhes dão as refeições às horas que querem, são elas que marcam as horas das reuniões, claro que não esperam por transportes públicos, são os seus chauffeurs que esperam por elas. Nunca estão nas filas das compras porque há quem as faça por elas. Assim, é mais fácil não se ser impaciente.

Mas o comum dos mortais impacienta-se com as vicissitudes do dia a dia. O autocarro que não chega, o comboio que está cheio, a fila que não anda, a sopa que se estragou, o computador que avariou quando devia estar a imprimir um documento importante.

É o mesmo mecanismo interior que nos faz impacientar com as pessoas de nossa casa. É frequente um dos membros do casal ser muito pontual e o outro muito disperso. Ou arranjam um meio-termo ou chegam às festas sempre zangados – e atrasados – porque um foi pressionado a despachar-se e o outro levou com a má cara em cima. Também, nos casamentos às vezes já estamos impacientes porque entre os aperitivos e o copo de água há, não raro, três ou quatro horas em que as pessoas enlanguescem por ali, sob a torreira do sol, com poucas cadeiras, quase nenhuma sombra. Enfim, motivos para nos impacientarmos não nos faltam.

Pessoas com quem falo parecem ter como ideal estar sempre com uma grande calma com o marido, os filhos, ou a mulher. Ter-se-à a ideia de que devemos ser sempre imperturbáveis, faça chuva ou faça sol dentro de nossas casas? A nossa impaciência, é, muitas vezes, uma maneira do outro acordar. Quantas vezes as crianças só assimilam quando se lhes levanta a voz. Quantas vezes o adulto só percebe que está a ser chato quando nos impacientamos com ele? Em nossa casa, não nos impacientarmos corresponderia a quê? A acolhermos tudo com bonomia? A dizermos com muita paciência: ‘”meu querido se te chegas ao fogo queimas-te.”? Não pode ser. Algumas vezes é a impaciência que nos dá energia para sermos firmes. Como diz, e bem, o nosso povo “a paciência tem [que ter] limites”.

Agora, uma coisa que eu acho que, em casa, se pode fazer para contrariar alguma impaciência deslocada, é aproveitar os bons momentos, os nossos momentos de descontração para dar mimo, muito mimo, ao marido, à mulher, aos filhos. O mimo nunca é demais. Todos precisamos muito de mimo. Mas mimar não é estragar. Mimar é reforçar a capacidade afetiva, estragar é reforçar o egoísmo.

No mesmo hino S. Paulo diz-nos que o amor não é invejoso.

É natural que quando amamos alguém não tenhamos inveja dessa pessoa. Mas não amamos toda a gente à nossa volta. Além disso, o que é a inveja?

Invejar é ficarmos roídos – lá está a expressão “roídos de inveja” – por não termos o que as outras pessoas têm ou são. É normal eu ver uma pessoa com alguma coisa que eu também gostava de ter. Por exemplo, se me perguntassem se eu gostava de ter sentido de orientação dizia logo que gostava muito. Mas não tenho inveja de quem tem um bom sentido de orientação.

A inveja começa quando o desejo de ter o que os outros têm rói a nossa pureza, começa a tomar conta de nós. A inveja começa quando não ter o que os outros têm se torna um sofrimento, quando isso se torna uma obcessão e dita comportamentos, normalmente atitudes. Há pequenos sinais que podem ser sintomas. Estar sempre a reparar o que fulano veste, normalmente para criticar, ou mandar uma gracinha. Ou dizer coisas como “quando vejo, na estrada, estes carros tão bons penso logo em traficantes”. Ou também posso fazer umas observações piedosas tipo: “cicrano tem uma casa tão boa, isso nem é cristão”. Quando aquilo que os outros têm, aquilo que os outros são, os lugares que os outros ocupam, começa a dar origem a críticas fininhas – ou menos finas – já temos um sintoma de inveja.

Querermos ter o que os outros têm não é pecado. Já não o admitirmos pode ser o começo do pecado. Se isso nos comer por dentro já estamos no campo do pecado. A inveja é como a humidade; só quando é muita é que se dá por ela.

 

Gonçalo Miller Guerra, sj

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