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De coração aberto ao reencontro

Depois de, nos artigos anteriores, ter partilhado algumas histórias que fui ouvindo e as reflexões que elas provocaram em mim, é altura de concluir.

Depois de tudo o que vivi é tempo de voltar. Voltar ao quotidiano e à rotina. Ao voltar, creio que o grande desafio é conseguir encontrar sentido no que fazemos, quando os nossos olhos viram sofrimento como nunca imagináramos, os nossos ouvidos escutaram histórias de uma crueldade atroz e as nossas mãos tentaram consolar corações dilacerados.

Se é certo que também há muito sofrimento, dor e pobreza em Portugal, a verdade é que nunca o vi como o vi em qualquer um destes três lugares. Nunca, como em qualquer um destes três lugares, senti que fazia tanto sentido ser médico. Mesmo quando as coisas não corriam bem, redescobri e confirmei a minha vocação profissional e percebi o que significa ir às periferias geográficas e existenciais e tocar as chagas do mundo, que são as chagas do próprio Cristo.

Sinto-me verdadeiramente privilegiado por ter podido contactar com tantas pessoas fascinantes. Recordo-as com lágrimas nos olhos, os amigos a quem disse “Até já”, na esperança de um dia nos podermos reencontrar num lugar melhor.

Lembro o meu fiel amigo e tradutor Shafik que em Tessalónica colaborou comigo nas consultas médicas. Com ele e com o Fahim, pude ver o jogo Benfica-PAOK, partilhar ovos afegãos e dormir em sua casa. Espero poder repetir a dose em Berlim, onde ele se encontra agora. Que, de preferência, o Benfica ganhe desta vez.

Recordo o Amir e a Freba, casal também afegão, que fugiram da guerra e trabalhavam como tradutores na nossa clínica em Lesbos. A Freba, enfermeira de formação, trabalha hoje nos Médicos Sem Fronteiras e o Amir na UNICEF. Relembro-me, como se fosse hoje, de ensinar o Amir a nadar e ver a cumplicidade deste casal. Conto visitá-los um dia no Afeganistão e acolhê-los em Portugal.

Não posso esquecer o Mohammad, iraquiano, nosso tradutor de árabe em Lesbos e com um talento formidável para tocar piano. Ainda sinto arrepios quando recordo o momento em que me contou que a sua casa em Mossul tinha sido bombardeada e toda a sua família estava agora morta. Hoje, estuda Psicologia em Atenas. Espero poder reencontrá-lo em breve.

Relembro também o Oseias, congolês que fala português e que sonha estudar em França. Conheci-o na Missa e, desde logo, ficámos amigos. Disse que me viria visitar em Portugal. As portas estão abertas “mon frère”.

Lembro o Mohammad, um dos poucos rohingyas que falava inglês. Conheci-o no hospital, precisamente no momento em que procurava um tradutor. Ainda pude trabalhar com ele alguns dias e impressionou-me o cuidado no trato com os doentes. Espero que possa conseguir encontrar emprego como tradutor e voltar um dia à sua aldeia no Myanmar.

Lembro o Farhad, Alim, Rehan, Robin, Nashad, Jony, nossos tradutores bengalis e que mais do que colegas se tornaram amigos. São rapazes cheios de sonhos e com a ambição de viver uma vida bem vivida. Obrigado por me inspirarem, companheiros!

Muitos outros nomes e mais ainda rostos me veem à memória. Nas suas histórias, dores e sofrimentos conheci o Senhor Crucificado. Nos seus olhos e sorrisos tímidos, como Maria Madalena, vi o Senhor Ressuscitado.

Em retrospectiva, só posso dar Graças por tanto Bem recebido e procurar continuar a rezar por todos as pessoas com quem pude contactar durante estes tempos de Graça. Tornaram-me melhor pessoa, cristão e médico. Deram-me mais do que alguma vez poderei retribuir.

A quem foi lendo estes textos, agradeço também o tempo despendido e espero que o Senhor se possa ter servido de mim para tocar e transformar corações. As histórias que fui partilhando poderiam ser as nossas ou as dos nossos pais, filhos, irmãos ou amigos. O mínimo que podemos fazer é ouvi-las, deixar-nos tocar por elas, deixar que nos (co)movam.

Com o tempo, a pergunta “porquê não a mim?” poderá ser substituída por “para quê a mim?”.

Na busca da resposta, estaremos a Caminho.

 

António Lourenço

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