Confesso que conheço muito pouco da música de Bob Dylan: talvez por não ter crescido a escutá-la ou por ser de um estilo que não aprecio muito. Fiquei por isso surpreendido com a atribuição do prémio Nobel da literatura ao cantor e compositor norte-americano: vi as reações, positivas e negativas, suscitadas pela atribuição, e fiquei-me por aí.
Mas o acontecimento fez-me contactar (através de uma pessoa amiga) com a obra escrita de Dylan, ou seja, as letras das suas canções, elaboradas e compostas pelo próprio: eis que me encontro com uma forte presença de uma experiência religiosa, muito frequente ao longo das canções. Temas como a conversão, a redenção, a vitória de Jesus sobre o mal, a salvação do pecado, o juízo ou a morte são constantes nas canções de Dylan, expressando-se em chave pessoal: “o Cordeiro salvou-me” ou “a Graça libertou-me”, por exemplo.
O pudor por exprimir uma experiência religiosa é algo que não encontramos na obra de Dylan: as palavras estão aí, sem qualquer dissimulação. Exprimem-se os mistérios fortes da vivência cristã de um modo que nós (crentes ou teólogos) temos dificuldade, hesitação ou pudor em referir: quem ousa hoje falar da redenção pelo sangue? E como fazê-lo em chave pessoal? De verdade nos experimentamos libertos de uma morte certa?
Procuro resistir à tentação de tirar conclusões: não significa isto que a atribuição do prémio Nobel faça mais sentido. Também não se trata de utilizar o testemunho de um artista como Dylan para fazer a “defesa” do cristianismo. Compete-me o difícil exercício da escuta e da leitura: de contactar e abrir uma caixa de ressonância onde possa ter espaço e voz semelhante experiência religiosa.
Partilho uma das letras que me marcaram: o título original é “Property of Jesus”. Foi o caráter forte deste título que me chamou a atenção. A letra da canção aponta-nos para a experiência e o testemunho de uma “diferença cristã”, de alguém que pertence a Jesus e que, por isso, suscita a dúvida, o paradoxo e a rejeição naqueles que com ele contactam.
Não é um testemunho por palavras: trata-se de atitudes, de alguém que, pelo encontro pessoal com Cristo, vive uma libertação das superstições, da veneração dos bens de consumo (“as coisas sem as quais não conseguis viver”), ou da lógica da competitividade (“não aumenta o seu valor à custa de outra pessoa”).
E aqui surge o paradoxo: esta pertença a Jesus liberta no discípulo o seu “eu verdadeiro”; são aqueles que o rodeiam que foram capturados, e cujo coração é de pedra: um coração petrificado pelas mecânicas da lei, do consumo, do juízo e da condenação do outro. É a pertença a Cristo que dá “carne”, sensibilidade, respiro, abertura e liberdade ao nosso coração; uma pertença que aponta para a linguagem da Nova Aliança.
Pertença de Jesus
Avançai e falai sobre ele porque ele vos faz duvidar
Porque negou a si mesmo as coisas sem as quais não conseguis viver
Ride-vos dele por trás das costas tal como fazem os outros
Lembrai-lhe o que ele era quando por aqui passar
Ele pertence a Jesus
Ficai ofendidos com ele o mais que puderdes
Vós tendes algo melhor
Tendes coração de pedra
Parai a vossa conversa quando ele passar na rua
Esperai que caia sobre si mesmo, oh, que agradável será
Porque ele já não pode ser explorado pela superstição
Porque não pode ser subornado ou comprado pelas coisas que vós venerais
Ele pertence a Jesus
Ficai ofendidos com ele o mais que puderdes
Vós tendes algo melhor
Tendes coração de pedra
Quando o chicote que vos mantém na linha não o fizer saltar
Dizei que ele é duro de ouvido, dizei que é um palerma
Dizei que está de passo trocado com a realidade enquanto tentais testar-lhe a coragem
Porque não paga tributo ao rei que vós servis
Ele pertence a Jesus
Ficai ofendidos com ele o mais que puderdes
Vós tendes algo melhor
Tendes coração de pedra
Dizei que ele é um falhado porque não tem senso comum
Porque não aumenta o seu valor à custa de outra pessoa qualquer
Porque não tem medo de tentar, porque não olha para vós e sorri
Porque não conta anedotas ou contos de fadas, dizei que não tem estilo nenhum
Ele pertence a Jesus
Ficai ofendidos com ele o mais que puderdes
Vós tendes algo melhor
Tendes coração de pedra
Podeis rir-vos da salvação, podeis jogar jogos Olímpicos
Pensai que quando por fim descansardes regressareis de onde viestes
Mas vós escolhestes uma história e tanto e mudastes desde o útero
Que aconteceu ao vosso eu verdadeiro, fostes capturados por quem?
Ele pertence a Jesus
Ficai ofendidos com ele o mais que puderdes
Vós tendes algo melhor
Tendes coração de pedra
[A tradução é de Angelina Barbosa e Pedro Serrano, in Bob Dylan, Canções (vol. II), Lisboa: 2008]
Rui Vasconcelos