Todas as pessoas merecem todo o respeito, independentemente da sua cultura ou formação, ideologia ou religião, origem social ou geográfica. Também o facto de cada pessoa ser mulher ou homem não pode ser motivo de menos consideração e direitos.
Historicamente, de um modo clamoroso no passado, mas ainda com tantas injustiças na atualidade, a mulher tem sido sujeita a discriminações que bradam aos céus. Uso propositadamente esta expressão porque, segundo o relato bíblico da criação, «Deus criou o ser humano à sua imagem, criou-o à imagem de Deus; Ele os criou homem e mulher» (Génesis 1, 27).
Deus, autor do género da pessoa que somos, homens ou mulheres, criou-nos com igual dignidade, portanto com os mesmos direitos e deveres próprios de quem espelha o amoroso DNA divino, a sua imagem e semelhança. A nossa feminilidade ou masculinidade é uma revelação da semelhança de cada mulher ou homem com o próprio Deus. As nossas diferenças como género de pessoas (sexuais, psicológicas, afetivas) são complementares e não antagónicas. Ninguém é mais ou menos por ser homem ou mulher. Todos merecem igual respeito e estima. Todos, de modo complementarmente diverso, espelhamos o amor que Deus é.
O substantivo essencial que nos define é «pessoa», ser livre e amoroso. De algum modo, permitam-me esta inovação gramatical, os vocábulos «mulher» ou «homem» são adjetivos que qualificam o modo concreto de ser pessoa. Aceitar e amar a originalidade da nossa identidade pessoal/sexual, como mulheres ou como homens, é aceitar o desígnio de Deus, que assim nos criou. Só nesta aceitação gozosa poderei experimentar o amor desmedido que Deus me tem. Só assim poderei ser para os outros o que eles necessitam que eu seja. Não um ser amorfo e indiferenciado, neutro ou confuso. Viver feliz, com todo o equilíbrio possível, a minha identidade sexual/afetiva é também um serviço social, comunitário.
Situo neste pano de fundo a presente disputa para alterar o «Cartão de cidadão» em «Cartão de cidadania». É claro que sou a favor da linguagem inclusiva. Tive o gosto de em 1995, há quase um quarto de século, ter sido um dos que aprovou o decreto 14 da Congregação (Capítulo) Geral da Companhia de Jesus: «Os jesuítas e a situação da mulher na Igreja e na sociedade». Entre as medidas práticas a observar, está o «uso da linguagem inclusiva, quando falamos e quando escrevemos».
Mas o justo equilíbrio («no meio está a virtude», como recorda o ditado latino) deve ser o denominador comum de todas as normas e modos de proceder. Por exemplo: é recomendável a todos o bom hábito da limpeza. Mas é sobremaneira desaconselhável a mania da limpeza, lavando-se alguém vezes sem conta e escovando-se repetidamente. A boa educação e a delicadeza devem ser parte do nosso código ético, mas sem cairmos no excesso de andar a fazer vénias a toda a gente que passa na rua, com salamaleques afetados e cortesias desproporcionadas, que acabam por incomodar quem se pretendia honrar.
O bom senso linguístico aconselha- nos a usar bem a linguagem tal como é, sempre limitada, procurando que seja inclusiva de homens e mulheres. Também aqui a pessoa está acima do seu género. Ou será que teremos de mudar gramáticas e dicionários, para que as palavras terminem numa letra consoante, omitindo as vogais que denunciariam os género feminino ou masculino? Assim passaria a identificar-se o Cartão de cidadão: «Cart d cidad»? Ou será que parlamentares promulgarão um decreto real proibindo o uso da língua portuguesa, passando a ser obrigatório o inglês, como língua estruturalmente mais inclusiva? Promulgue-se sim o decreto do real bom senso!
Manuel Morujão, sj