fbpx

A história de Rute

“A profundidade está escondida. Onde? Na superfície”. (Von Hofmannstahl)

O livro de Rute ocupa algumas páginas – poucas, apenas quatro capítulos que se leem calmamente numa hora – na parte do Antigo Testamento a que os hebreus chamam de “Escritos”: a par da “Lei” (os cinco livros do Pentateuco) e dos “Profetas”, os “Escritos” apresentam-nos a experiência de fé no quotidiano, por entre os passos e passagens, encontros e desencontros da nossa própria vida. Porque a Bíblia não narra apenas eventos extraordinários ou grandes acontecimentos salvíficos: também na história de uma migrante se revela a presença de Deus.

Elimelec é um chefe de família hebreu, pai de dois filhos, que, devido a uma situação de fome e carestia em Israel, se vê forçado a emigrar de Belém de Judá para um país vizinho chamado Moab. Aí se estabeleceu; e, a julgar pelo silêncio do texto, podemos depreender que Elimelec se estabeleceu sem dificuldades de maior, conseguindo superar a situação de carestia.

Mas, num espaço de dez anos, morrem na família quer o patriarca Elimelec, quer os seus dois filhos, que entretanto haviam casado com duas jovens de Moab chamadas Rute e Orfa. Noemi, viúva de Elimelec, decide então regressar à sua terra natal para encontrar junto da família afastada algum apoio: salvo raras exceções, a mulher dependia – em Israel como, regra geral, em toda a antiguidade – da proteção económica e social do marido e dos filhos; por isso, perder quer o marido, quer os filhos significava, por outras palavras, cair numa situação de máxima fragilidade e vulnerabilidade. O livro de Rute apresenta-nos a história de uma presença e ação de Deus manifestadas, não na força e no poder dos grandes sinais, mas no silêncio e vulnerabilidade de duas viúvas.

Duas viúvas porque Rute decide ficar com a sua sogra Noemi, ao passo que Orfa regressa à sua família de origem. Rute acompanha Noemi no regresso a Israel: o que Rute diz a Noemi reveste-se de uma rara qualidade:

«Rute respondeu: “Não insistas para que te deixe, pois onde tu fores, eu irei contigo e onde pernoitares, aí ficarei; o teu povo será o meu povo e o teu Deus será o meu Deus. Onde morreres, também eu quero morrer e ali serei sepultada. Que o Senhor me trate com rigor e ainda o acrescente, se até mesmo a morte me separar de ti”» (Rt 1, 16-22).

Nas palavras de Rute – uma estrangeira para Israel – encontramos a definição por excelência da aliança de Deus com Israel: uma aliança de pertença mútua e de fidelidade até à morte. Para o texto, a aliança de Deus revela-se na fidelidade de uma estrangeira a uma viúva de Israel: algo que, segundo as leis de Israel, Rute não tinha obrigação de fazer.

Noemi e Rute chegam a Belém, e Rute começa a respigar nos campos durante a ceifa da cevada. Trata-se de uma das tradições mais veneráveis em Israel: os agricultores, segundo a lei, só podiam ceifar uma vez os campos; o que daí sobrasse seria deixado nos campos para que os pobres e migrantes – despossuídos de propriedades e rendimentos – pudessem respigar e recolher a sua parte. A propriedade em Israel é privada, mas não é fechada: tem um espaço de respiro que lhe permite, em parte, libertar-se do egoísmo absoluto.

A história termina bem: Rute casa-se com um parente afastado de Elimelec chamado Booz, garantindo assim proteção para si e para Noemi. O diálogo de Booz com Rute é também de uma beleza única: «Já me contaram tudo o que fizeste pela tua sogra, depois da morte do teu marido: como deixaste o teu pai, a tua mãe e a terra onde nasceste e vieste para um povo que há bem pouco nem conhecias. O Senhor te pague por todo o bem que fizeste; que o Senhor, Deus de Israel, sob cujas asas te acolheste, te dê a recompensa merecida» (Rt 2, 11-12).

Conclui o texto referindo que Rute terá um filho de nome Obed, que será o avô de David, o grande rei de Israel. Rute, a estrangeira, entra assim na genealogia que dará origem ao Messias de Israel: sim, o Messias será um mestiço, não um sangue-puro. Mateus recolherá este dado, ao colocar o nome de Rute na genealogia de Jesus (Mt 1, 5).

Precisamos urgentemente de histórias que nos recordem aquilo que somos. Vivemos tempos difíceis, onde emerge – de modo lento mas inexorável – uma mentalidade segundo a qual o estrangeiro representa uma ameaça à nossa segurança, aos nossos empregos (uma bem maior ameaça ao emprego e à coesão social advém da fuga de capitais para paraísos fiscais, por exemplo), à nossa cultura e modo de vida. O livro de Rute aponta uma flecha no coração da história bíblica e da nossa própria história, falando-nos de migração. E recorda-nos como tudo começou, quando Deus pediu a Abraão para sair da sua terra, rumo a uma terra que não era a sua… (cf. Gn 12, 1-4).

 

Texto: Rui Vasconcelos

Imagem: Rute e Noemi, vitral da Igreja de Saint James em Halifax, Canadá.

 

Atualidade

Meditação Diária

Seleccione um ponto de entrega