A profundidade está escondida. Onde? Na superfície. (Von Hofmannstahl)
O livro de Rute ocupa algumas páginas poucas, apenas quatro capítulos que se leem calmamente numa hora na parte do Antigo Testamento a que os hebreus chamam de Escritos: a par da Lei (os cinco livros do Pentateuco) e dos Profetas, os Escritos apresentam-nos a experiência de fé no quotidiano, por entre os passos e passagens, encontros e desencontros da nossa própria vida. Porque a Bíblia não narra apenas eventos extraordinários ou grandes acontecimentos salvíficos: também na história de uma migrante se revela a presença de Deus.
Elimelec é um chefe de família hebreu, pai de dois filhos, que, devido a uma situação de fome e carestia em Israel, se vê forçado a emigrar de Belém de Judá para um país vizinho chamado Moab. Aí se estabeleceu; e, a julgar pelo silêncio do texto, podemos depreender que Elimelec se estabeleceu sem dificuldades de maior, conseguindo superar a situação de carestia.
Mas, num espaço de dez anos, morrem na família quer o patriarca Elimelec, quer os seus dois filhos, que entretanto haviam casado com duas jovens de Moab chamadas Rute e Orfa. Noemi, viúva de Elimelec, decide então regressar à sua terra natal para encontrar junto da família afastada algum apoio: salvo raras exceções, a mulher dependia em Israel como, regra geral, em toda a antiguidade da proteção económica e social do marido e dos filhos; por isso, perder quer o marido, quer os filhos significava, por outras palavras, cair numa situação de máxima fragilidade e vulnerabilidade. O livro de Rute apresenta-nos a história de uma presença e ação de Deus manifestadas, não na força e no poder dos grandes sinais, mas no silêncio e vulnerabilidade de duas viúvas.
Duas viúvas porque Rute decide ficar com a sua sogra Noemi, ao passo que Orfa regressa à sua família de origem. Rute acompanha Noemi no regresso a Israel: o que Rute diz a Noemi reveste-se de uma rara qualidade:
«Rute respondeu: Não insistas para que te deixe, pois onde tu fores, eu irei contigo e onde pernoitares, aí ficarei; o teu povo será o meu povo e o teu Deus será o meu Deus. Onde morreres, também eu quero morrer e ali serei sepultada. Que o Senhor me trate com rigor e ainda o acrescente, se até mesmo a morte me separar de ti» (Rt 1, 16-22).
Nas palavras de Rute uma estrangeira para Israel encontramos a definição por excelência da aliança de Deus com Israel: uma aliança de pertença mútua e de fidelidade até à morte. Para o texto, a aliança de Deus revela-se na fidelidade de uma estrangeira a uma viúva de Israel: algo que, segundo as leis de Israel, Rute não tinha obrigação de fazer.
Noemi e Rute chegam a Belém, e Rute começa a respigar nos campos durante a ceifa da cevada. Trata-se de uma das tradições mais veneráveis em Israel: os agricultores, segundo a lei, só podiam ceifar uma vez os campos; o que daí sobrasse seria deixado nos campos para que os pobres e migrantes despossuídos de propriedades e rendimentos pudessem respigar e recolher a sua parte. A propriedade em Israel é privada, mas não é fechada: tem um espaço de respiro que lhe permite, em parte, libertar-se do egoísmo absoluto.
A história termina bem: Rute casa-se com um parente afastado de Elimelec chamado Booz, garantindo assim proteção para si e para Noemi. O diálogo de Booz com Rute é também de uma beleza única: «Já me contaram tudo o que fizeste pela tua sogra, depois da morte do teu marido: como deixaste o teu pai, a tua mãe e a terra onde nasceste e vieste para um povo que há bem pouco nem conhecias. O Senhor te pague por todo o bem que fizeste; que o Senhor, Deus de Israel, sob cujas asas te acolheste, te dê a recompensa merecida» (Rt 2, 11-12).
Conclui o texto referindo que Rute terá um filho de nome Obed, que será o avô de David, o grande rei de Israel. Rute, a estrangeira, entra assim na genealogia que dará origem ao Messias de Israel: sim, o Messias será um mestiço, não um sangue-puro. Mateus recolherá este dado, ao colocar o nome de Rute na genealogia de Jesus (Mt 1, 5).
Precisamos urgentemente de histórias que nos recordem aquilo que somos. Vivemos tempos difíceis, onde emerge de modo lento mas inexorável uma mentalidade segundo a qual o estrangeiro representa uma ameaça à nossa segurança, aos nossos empregos (uma bem maior ameaça ao emprego e à coesão social advém da fuga de capitais para paraísos fiscais, por exemplo), à nossa cultura e modo de vida. O livro de Rute aponta uma flecha no coração da história bíblica e da nossa própria história, falando-nos de migração. E recorda-nos como tudo começou, quando Deus pediu a Abraão para sair da sua terra, rumo a uma terra que não era a sua (cf. Gn 12, 1-4).
Texto: Rui Vasconcelos
Imagem: Rute e Noemi, vitral da Igreja de Saint James em Halifax, Canadá.