Muitos são os cristãos que, no mês de novembro, recordam aqueles que amam e que já faleceram. Para os católicos, as celebrações do Dia de Todos os Santos e dos Fiéis Defuntos, no início do mês, recordam-nos que, na morte, a vida muda mas não acaba. A ressurreição de Jesus ensinou-nos que Deus tem poder até sobre a morte. Apesar desta verdade se ter tornado clara somente com o alvor do Cristianismo, evidências da mesma estão bem presentes no livro dos Salmos.
Entre outros, o «Grande Hallel», o canto que inclui os Salmos 112-117 e o Salmo 135, é um bom exemplo disso mesmo (confira o nosso artigo de março de 2021). Jesus canta o «Grande Hallel» na noite que antecede a sua morte, no final da ceia pascal. Ele encontrou consolação nos salmos que louvam a fidelidade eterna de Deus para com o seu povo e que afirmam a perpetuidade da sua fé no poder divino, particularmente no poder de Deus sobre a morte.
Os católicos expressam a sua confiança nessa mesma fidelidade e poder de Deus nos dez salmos responsoriais que a Igreja escolheu para as missas exequiais. A maioria destes salmos são lamentos individuais (Sl 24; 26, 7-14; 42; 129; 142) e cantos de confiança (Sl 22; 26, 1-6; 62). Encontramos também um hino (Sl 102), um cântico de ação de graças (Sl 115),e uma «Canção de Sião» (Sl 121), um género raro, comummente associado às peregrinações a Jerusalém.
Os salmos de lamento são normalmente constituídos por cinco partes: um pedido de ajuda, uma queixa, uma proclamação de confiança, uma oração a pedir auxílio e um louvor da ação de Deus. No Salmo 24, 20, o poder de Deus sobre a morte surge na oração para pedir auxílio: «Defendei minha alma e livrai-me: não seja confundido eu que em vós me acolhi». Contudo, nestes salmos é mais comum anunciar-se o poder de Deus na proclamação de confiança. No Salmo 26, 13-14 pode ler-se: «Sei que verei os benefícios do Senhor na terra dos vivos! Espera no Senhor e sê forte! Fortifique-se o teu coração e espera no Senhor!» De forma semelhante, o Salmo 42, 5 reza: «Por que te deprimes, ó minha alma, e te inquietas dentro de mim? Espera em Deus, porque ainda hei de louvá-lo: ele é minha salvação e meu Deus». No Salmo 129, 5, o poder de Deus encontra expressão simbólica na sua «palavra», a promessa de resgatar o seu povo das tribulações, sendo a morte uma delas: «Ponho a minha esperança no Senhor. Minha alma tem confiança em sua palavra». A promessa de Deus está também presente no apelo do fiel a uma resposta da parte de Deus, no Salmo 142, 7: «Apressai-vos em me atender, Senhor, pois estou a ponto de desfalecer. Não me oculteis a vossa face, para que não me torne como os que descem à sepultura». Estas declarações cheias de confiança revelam a esperançosa fé de Israel mesmo no meio da tormenta.
Diante da morte, a liturgia também se deixa pautar por três cânticos de confiança. Fazendo todos eles referência à reconfortante presença de Deus, estes salmos mostram uma grande diversidade criativa. O mais conhecido de todos os salmos, o Salmo 22, é um cântico de confiança. «Ainda que eu atravesse o vale escuro (ou como se pode ler nas versões em grego e latim, “o vale da sombra da morte”), nada temerei, pois estais comigo» (Sl 22, 4). Da mesma forma, o Salmo 26, 4 fala da presença de Deus como o sentido da vida: «Uma só coisa peço ao Senhor e a peço incessantemente: é habitar na casa do Senhor todos os dias de minha vida». O Salmo 62, 4 vai ainda mais longe: «porque vossa graça me é mais preciosa do que a vida». Neste caso, o salmista escolheria a presença de Deus em detrimento da sua própria vida.
Cada um na sua forma, os três restantes salmos (102, 114, 121) celebram a eterna fidelidade de Deus e o seu poder sobre a morte. No Salmo 102, um hino, o salmista louva a sempre presente misericórdia deDeus: «O Senhor é bom e misericordioso, lento para a cólera e cheio de clemência» (102, 8). No Salmo 114, um cântico de ação de graças, o salmista agradece a Deus pela vida nova: «pois livrou-me a alma da morte, preservou-me os olhos do pranto, os pés da queda» (114, 8). Estes salmos enfatizam a ideia, que cresceu nos séculos que antecederam o nascimento de Jesus, de que a misericórdia de Deus poderia estender-se mesmo para além da sepultura. O Salmo 121 faz parte de um grupo de salmos chamados «Cântico das peregrinações», ou «salmos graduais». Cada um destes narra a viagem dos peregrinos subindo a montanha de Jerusalém. Tradicionalmente, a Igreja tem recorrido a estes salmos para descrever as lutas e esperanças das almas que se movem em direção a Deus.
O Salmo 121, 2 é a voz de um peregrino que completou a subida: «Eis que nossos pés se estacam diante de tuas portas, ó Jerusalém!» Esta alegria e alívio é a voz de quem alcançou a união com Deus.
Como muitos judeus do seu tempo, Jesus provavelmente terá memorizado o livro dos Salmos. Ele usou a linguagem e intuições destes para melhor compreender a sua própria relação com o Pai. Jesus canta salmos enquanto é preso (Mt 26, 30; Mc 14, 26), e grita na cruz com palavras retiradas deles (Mt 27, 46; Mc 15, 34; Lc 23, 46). As esperanças, imagens, promessas e símbolos que ele aprendeu nas palavras dos salmos ajudaram-no a encarar a sua própria morte com uma fé completa e obediente.
A Igreja transmite-nos esta mesma fé. Nos dolorosos momentos de funeral em que nos despedimos de quem amamos, bem como nos momentos subsequentes, em que recordamos os nossos entes queridos, as palavras dos salmos recordam-nos que Deus é mais poderoso que a morte e é para sempre fiel à sua promessa de vida nova.
Michael Simone, sj
Professor de Bíblia na School of Theology and Ministry |Boston College
(In Mensageiro do Coração de Jesus, novembro de 2021)





