1. Neste momento, não me interessa entrar no debate sobre a despenalização da eutanásia em Portugal (escrevo antes da votação no Parlamento). Interessa-me, antes, refletir sobre a cultura subjacente ao debate e sobre o que ela diz de nós e do nosso futuro.
2. Dito de forma muito breve, estamos a colher os frutos da modernidade, que se caracteriza pela afirmação extremada do indivíduo e dos seus direitos, um indivíduo concebido como matéria biologicamente animada totalmente autónoma e senhora de si. Este indivíduo, limitado pela duração biológica da sua existência, não encontra em si nem fora de si nenhuma espécie de transcendência nada em relação ao qual se decida a compreensão de si mesmo. A sua referência é o próprio corpo e a capacidade do mesmo para atingir objetivos limitados, mas compensadores.
3. Eticamente, este indivíduo é relativista não poderia ser de outro modo, privado de transcendência. Não digo fique claro que não tem uma ética; digo apenas que se trata de uma ética do instante e do mais conveniente em cada momento. Uma ética assim faz da liberdade individual um absoluto, provisoriamente limitado pelo “não causar mal a outro sem o seu consentimento” (embora também a noção de “mal”, aqui, seja relativa o que é mal para uns pode ser indiferente ou bom para outros).
4. As opções políticas dos indivíduos filhos da modernidade enraízam-se no seu materialismo antropológico e no correspondente relativismo ético. Quando em confronto estão temas como a intangibilidade da vida humana e a liberdade do indivíduo, a primeira (considerada um princípio abstrato e sem nenhum fundamento absoluto) fica sempre a perder relativamente à segunda (considerada um absoluto muito concreto). Sendo este modelo ético extremamente perigoso, legisla-se para criar salvaguardas que protejam os indivíduos de fora ficam aqueles considerados indignos de tal proteção ou, pelo menos, de menor valor. É o caso paradigmático do aborto a pedido que, não por acaso, é sempre o primeiro passo neste tipo de questões. Depois vêm outras, sempre na linha da liberdade absoluta dos indivíduos. No fim da linha, a eutanásia, como afirmação última de liberdade e autonomia e também de desprezo pelo corpo, cujo valor se mede pela capacidade de fazer coisas (como dizia alguém, lapidarmente: “eu não gostaria nada de sobreviver a mim próprio”). A cultura da glorificação do corpo é também a cultura da sua degradação e instrumentalização.
5. Fruto do poderoso impulso recebido da civilização que nos precedeu, julgamos poder continuar indefinidamente este progresso sem forma. A seu tempo, porém, a força da gravidade há de impor-se e tudo começará a desmoronar-se. Se não recuperarmos os alicerces (se, como escreveu Marcello Pera, não voltarmos a “chamar-nos cristãos”), chegará o dia em que a eutanásia será tão normal como o aborto, as lutas de gladiadores tão normais como um jogo de futebol, a escravatura tão normal como a prostituição, a eliminação dos indesejáveis tão normal como as mudanças de sexo… E seremos outra coisa, a que talvez também se chame “civilização”.
Elias Couto