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“A carne de Cristo”

Tenho ouvido desabafos de muita gente, levada a mudança de vida e de critérios, de gestos e de palavras, tocada pelas palavras do Papa na Mensagem para esta Quaresma, quando nos afirma que «no pobre, encontramos a carne de Cristo». No pobre, no doente, no chagado, no esfomeado, no que tem sede, no que vive só e abandonado, no que sofre violência, cadeia, maus-tratos, no refugiado que foge da guerra e da fome…

É a «carne de Cristo» que descobrimos pela graça da fé, em cada pessoa, sobretudo nos membros sofredores da humanidade. Descobri-Lo no santo, no bem vestido, no bem comportado, no elegante, no que tem saúde parece-nos mais fácil, mas a «carne do Senhor» está nos mais doentes, desprotegidos, nos presos e criminosos, nos que não têm casa, pão, amor, fé. É nessa multidão imensa que vive a fome, a guerra, a violência, a droga, o crime, a tortura, a prisão, que devemos encontrar mais a «carne de Cristo». Que descoberta maravilhosa coloca o Papa Francisco diante de nós. Como o mundo seria outro se todos tivéssemos esta visão tão cristã, tão verdadeira, tão sábia.

Descobrir a «carne de Cristo» em cada um dos que sofre é também perceber que a paixão de Cristo continua viva, partilhada por milhões de pessoas que precisam do nosso amor, da nossa partilha, da vivência ativa e audaz das obras de misericórdia, para aliviar Jesus que tem fome e sede, que está nu, doente, preso, para consolar a Jesus na pessoas de tantos que sofrem a calúnia, o desprezo, a injustiça, o roubo, a violência, que são vítimas da fraude, da injúria, que se deixam tentar pelo vício do álcool, da droga, da luxúria, da pornografia, etc.

Um mundo em pecado, um mundo em que o mal, com seus muitos tentáculos, causa tanto sofrimento e pecado, um mundo em que muitos são destruídos pelo ódio, pela vingança, pelo crime. Um mundo onde a «carne de Cristo» sofre na criança explorada de muitas formas, nas vítimas da pedofilia, nas pessoas vendidas e vítimas de tráfico para serem exploradas em trabalhos forçados, em exploração sexual. A família humana está doente, o mundo está doente, a Igreja sofre de muitas doenças, apesar de ser a «esposa santa de Jesus». Jesus sofre em milhões de pessoas, a sua «carne» está ferida, chagada, maltratada, violentada, explorada.

A caminhada quaresmal faz-nos também abrir os olhos da alma e do coração para contemplar o Ressuscitado e alegrarmo-nos n’Ele. Com a Páscoa, renasce a esperança. Com a Páscoa, não só cantamos os aleluias, mas vivemos a alegria de Jesus Ressuscitado. Com a Páscoa, como os discípulos de Emaús, descobrimos Jesus em cada pessoa, em cada um que vive connosco, que trabalha connosco, que passa ao nosso lado, que connosco dialoga. Com a Páscoa, seremos criaturas novas, renovadas pela vida de Jesus e pela ação do Espírito. Daí que a esperança nunca morre, não pode morrer. Seria a tragédia máxima.

O mal, o mundo doente, o demónio não nos assustam, pois a força e a vida do Ressuscitado é vencedora de tudo e de todos, do pecado e da morte. Temos que impregnar o mundo à nossa volta desta certeza, desta esperança, desta contínua alegria. Vamos descobrindo momentos de ressurreição, cantos de alegria pascal, saboreando a presença do Ressuscitado mesmo no meio da dor, da doença, da morte, das múltiplas situações difíceis. E Ele nos vai gritando, ou segredando no mais íntimo do coração: «Sou Eu, não temais». Ele, o Senhor da vida, do amor, da festa, da misericórdia, da divina alegria, será em nós a vida da nossa vida. Com Ele e n’Ele, poderemos ser contínua semente de esperança, contínua semente a florir, contínuo sorriso que alegra e consola. Não podemos desistir nunca.

Por causa do amor e da vida de Cristo, da sua «carne que sofre em cada doente», temos obrigação de ser portadores da alegre esperança, da vida do Ressuscitado, semente de um mundo novo, mais fraterno, mais pacífico, mais justo, mais irmão. E cada obra de misericórdia vivida com intensidade leva Jesus ao coração de milhões de irmãos e irmãs. Que bem imenso. Que graça maravilhosa. Que surpresa do divino a atuar sem cessar, como em oceano infinito de amor.

 

Dário Pedroso, sj

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