Não é novidade na história da Igreja que o magistério dos Papas seja contestado por grupos de cristãos ou de teólogos. Para não ir mais atrás, vemos que os pontificados de Bento XVI e João Paulo II tiveram também os seus críticos. E não há problemas de maior em relação a isso, é um facto que testemunha a diversidade e a riqueza dentro da Igreja, quando estes assuntos não tocam o fundamental das verdades da fé. E que é, digamos de início, o caso presente. Não está em questão uma verdade de fé, mas sim uma proposta de discernimento pastoral. Mas, no caso desta “correção filial” por parte de um grupo de teólogos feita ao Papa Francisco a propósito da sua Exortação Apostólica “A Alegria do Amor”, o tema tem levantado mais alarido, por uma questão muito séria: é uma correção de heresias que se propagam e que foram produzidas pela mesma Exortação. Falar de “heresia” num contexto destes põe-nos em alerta, pois é exagerado. “Alegria do Amor” não é um documento dogmático, importa não confundir as coisas. E isso leva-nos então a perguntar: o que se está a passar?
Num esclarecedor artigo publicado há dias pelo Professor João Duque, no site da Arquidiocese de Braga, afirma-se que a questão de fundo aqui presente é a convivência de paradigmas teológicos muito diferentes e que é importante não colocar a questão a partir de divisões simplistas entre “conservadores” e “progressistas” ou quem gosta mais ou gosta menos do Papa Francisco. A questão não são simpatias pessoais ou as várias formas legítimas de estar na Igreja, com maior ou menor confronto. A questão aqui, a meu ver, é o modo como o magistério da Igreja se tem vindo a propor aos cristãos na sua vida concreta e a difícil desacomodação que isso tem trazido em vários setores da Igreja.
Aparece aqui a diferença que marca o pontificado de Francisco, numa categoria verdadeiramente essencial para entender as suas posições e propostas, as suas palavras e os seus gestos. Francisco move-se no paradigma da Misericórdia e as consequências práticas que este tem na vida da Igreja e do mundo. Um dos aspetos que decorre deste paradigma é o apelo ao discernimento das situações concretas. E é aqui, a meu ver, que entra a divisão: o verdadeiro discernimento não acontece quando tudo é preto ou branco, mas sim quando se assume a vida como uma multiplicidade de tons muito diferentes. Naturalmente, isto causa desconforto e algum desconcerto: “Quais são os critérios? Até onde se pode ir? Como se protege o essencial da norma?”. São questões que fazem todo o sentido e é obrigatório e honesto colocar… mas têm de se colocar! Mais fácil é tomar a posição fechada de “nisto não se pode tocar e ponto final”, fechando-se à partida ao exercício de colocar questões e, mais difícil ainda, experimentá-las no seu drama único e fascinante: a vida humana.
Não estará a ser pedida à Igreja, desde os principais representantes do magistério, até aos simples fiéis, uma abertura de espírito e de coração àquilo que, no fim de contas, é a única missão da Igreja: ser “sinal, e o instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o género humano”? (LG 1) E que este sinal é sinal de reconciliação, de perdão, de vida, de autenticidade e coerência com Cristo e o seu Evangelho? O discurso da Misericórdia e as suas inquietações sempre causaram perturbação, é a história de Cristo e a dos grandes santos.
Acolhamos com generosidade o momento presente. Não tenhamos medo da misericórdia. E demos contínuas graças a Deus pelo dom da novidade que Francisco tem trazido à Igreja, rezando por ele e pela sua missão de Pastor universal.
António Valério, sj