Por ocasião do falecimento de João Almiro, ocorrido esta semana, recordamos o testemunho que deu à revista Mensageiro, em maio do ano passado.
João Almiro, de 89 anos, nascido no concelho de Tondela, distrito de Viseu, tem uma vida longa, com muitas histórias para contar. Há mais de 50 anos fundou um laboratório farmacêutico, que chegou a ser dos maiores do país, abriu uma farmácia e criou várias empresas. Esteve em diferentes zonas do mundo, desde o Polo Norte à Austrália. Com condições para ter uma vida tranquila e sem grandes preocupações, optou por estender a mão àqueles que mais precisavam de ajuda. Na casa onde criou os filhos, acolhe cerca de 30 pessoas, com histórias de vida ligadas ao álcool, prostituição, toxicodependência e abusos sexuais. Uma missão cujo sucesso atribui à «graça de Deus». A casa, para a qual escolheu o nome “As Andorinhas”, é uma iniciativa totalmente privada.
Campo de Besteiros, concelho de Tondela. Uma manhã tranquila. Um edifício como tantos outros, à face da estrada que atravessa a localidade. Álvaro, 48 anos, com um passado ligado ao consumo de álcool, vem-nos receber. É um dos “filhos” acolhidos por João Almiro, que considera um pai. Tal como o consideram António, de 51 anos, e Fábio, de 23. Os três partilham histórias de vida marcadas por dificuldades, pelo acolhimento n’ “As Andorinhas” e pelo desejo de sair e abraçar uma vida digna.
Álvaro leva-nos por umas escadas, onde uma imagem do Menino Jesus, acompanhada de uma mensagem, faz apelo à humildade. «Segui a humildade deste Rei. À Maria foi recusado um espaço para o rei dos reis poder nascer; no entanto foi no palácio do amor e da humildade que nasceu Deus Menino…».
Ao cimo das escadas, conhecemos João Almiro. Mãos trémulas e voz um pouco sumida, mas perfeitamente lúcido. Numa pequena sala, vai-nos contando a sua história de vida. «Éramos oito irmãos. O meu pai era médico da aldeia e eu era o quinto filho da casa». Quis ser micro-cirurgião, mas o pai não deixou e “empurrou-o” para Farmácia. «O meu pai morreu e eu fui para Farmácia porque ele queria».
«Vivi a minha vida académica e isso deu-me muita experiência. Ensinou-me muito, onde está o mal, onde está o bem, e qual é o caminho de Deus. Tudo o que estou a fazer não sou eu; sou um instrumento de Deus. Quando Ele me quiser levar…».
Teve sete filhos. Um faleceu quando era bebé e outros dois, os únicos que formou, também morreram novos. Ficou viúvo aos 37 anos. «Fiquei só com os filhos [com idades entre os 2 e os 14 anos] e com Deus. Tive uma fase da minha vida em que pensei ir para uma missão, mas quando criei os filhos não tive coragem de os deixar e fiz a minha missão cá».
Há cerca de 50 anos recebeu uma bebé de seis meses, com Trissomia 21, filha de pais alcoólicos, que entretanto já faleceu. Foi a primeira pessoa a ser recebida n’ “As Andorinhas”, um nome que escolheu porque este “filhos adotivos” também «vão e vêm». «As andorinhas vão para África e depois voltam». Na sua casa é igual. Depois de levantar vôo, as suas andorinhas acabam por regressar, umas para recordar o “pai” que as acolheu, outras para «pedir socorro». «A porta está sempre aberta».
João Almiro não se considera um herói. «Não sou polícia nem juiz, mas um pai ou irmão mais velho. Nunca os acuso; posso é defendê-los, sem mentir». Enquanto olha as fotografias, recorda vidas que passaram pelas suas mãos. Histórias de sucesso, que o deixam realizado; e vidas que, apesar da ajuda, não encontraram o rumo certo e deixam alguma mágoa.
Entre os casos com final feliz está o de uma jovem de 23/24 anos que se prostituía e da qual cuidou. «Era a vergonha da terra e tornou-se uma mulher digna». Lembra também uma jovem de 14 anos, raptada durante 15 dias por dois indivíduos, que abusaram dela sexualmente. Casou com um rapaz, que também estava na casa do farmacêutico, e acabou por emigrar. Há tempos, enviou uma fotografia, com uma mensagem de gratidão, onde se pode ler «meu herói, meu amigo, meu professor, meu pai». «Isto vale dinheiro. O meu caixão com dinheiro não me interessa nada. Quero é amor».
«Salvei muita gente, e perdi outros, porque não tive capacidade de os salvar. Fiz o que pude. Também tenho que falhar. Faz parte da natureza humana. Faço o que posso e o que é a vontade de Deus. Se não o fizer em nome de Deus, não estou a desempenhar a minha missão».
A casa “As Andorinhas” tem sido sustentada com o dinheiro que João Almiro obtém através da farmácia, com ajudas particulares, de pessoas que oferecem bens alimentares ou dinheiro, e com o que é produzido nas duas quintas, que os residentes ajudam a cuidar.
Embora já tenha alguma dificuldade de locomoção, João Almiro vai com frequência visitar pessoas que conheceu e acolheu, mas que, por circunstâncias várias, foram detidas. «Nem imagina o que eles ganham e eu também» nessas visitas. «Sou feliz. Não tenho medo de nada. Tenho Deus atrás de mim e com Ele vou a qualquer parte do mundo».
Questionado sobre o futuro da casa, João Almiro mostra mais uma vez a confiança em Deus. “As Andorinhas” estão «nas mãos de Deus». Aliás, a relação com Deus é fundamental para gerir esta iniciativa. Antes das principais refeições, todos rezam em conjunto. E no final do jantar, “pai” e “filhos” rezam um mistério do terço.
«Quero ser um seguidor de Deus. Vivo à sombra de Deus. Em tudo o que faço hoje em dia procuro, dentro da minha fraqueza humana, estar em nome de Deus. É essa a graça que eu tenho. É a minha riqueza. Eu sinto que Deus vai ser débil comigo quando eu lá chegar».
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