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“E vi que era o meu irmão”

Das minhas leituras recentes caiu-me debaixo dos olhos um ditado do Tibete que termina com o cabeçalho escolhido para este texto. Reza assim: “Um dia avistei qualquer coisa que mexia ao longe. Julguei que era um animal. Aproximei-me e apercebi-me que era um homem. Ele aproximou-se mais e vi que era o meu irmão”. Parei a leitura; algo me dizia algo merecedor de reflexão. E lembrei-me do relato evangélico em que Cristo cura um cego em duas etapas, começando por ver os homens como árvores ambulantes (“qualquer coisa que mexia”) e só depois como homens (“Aproximei-me e apercebi-me que era um homem”). A cura fica por aqui, enquanto o ditado tibetano vai mais longe, vendo naquele homem o seu irmão: “E vi que era o meu irmão”. Há movimento de aproximação progressiva: ao longe pensou ver um animal; mais perto viu um homem, um “semelhante”. E aqui ficaria se o homem “visto” não se aproximasse, ele também do homem que o via: “Ele aproximou-se mais e vi que era o meu irmão”. Neste “mais” da aproximação mútua viram-se e reconheceram-se como irmãos.

Para a maioria dos portugueses, setembro é o regresso à realidade do trabalho, às tensões do quotidiano, às preocupações da vida e ao mundo dos negócios onde prevalecem os interesses. E os interesses não “unem”, apenas “reúnem”; não aproximam, apenas juntam. O interesse pelo futebol ou pela música consegue colocar lado a lado milhares de adeptos e de fãs, homens e mulheres que mal se conhecem, se é que se conhecem. Vieram por um interesse comum; estão tão perto fisicamente uns dos outros como longe ao mesmo tempo. Os adeptos do futebol não vieram para se “encontrar” mas para ver o futebol e apoiar a sua equipa; os fãs dos concertos rock vieram para ouvir os seus cantores favoritos e bater palmas eufóricas. Depois cada um vai à sua vida. Milhares de homens e mulheres lado a lado em que os interesses não lhes juntaram as vidas. Essas ficaram à espera algures, no lugar para onde vão de regresso.

Perto e longe talvez seja a melhor forma de descrever a sociedade atual em correrias permanentes atrás de autocarros e de metros onde se sentam as pessoas lado a lado, tão perto e tão longe, a caminho dos empregos; tão perto e tão longe nos locais do trabalho, em silêncio, não vá a produção ser prejudicada; tão perto e tão longe no fim do dia, de regresso a casa nos mesmos autocarros e metros, com rostos cansados e vidas exaustas à espera do sofá (normalmente para eles) e da cozinha (infelizmente para elas), onde a televisão se encarrega de os deixar novamente tão perto e tão longe! E estão lado a lado! Não há tempo para pensar que ali está “o meu irmão”, muito menos para reconhecer a sua presença e muito menos ainda e, por isso mesmo, para sentir essa presença.

Pena que seja assim ou que tenha de ser assim, mas pensar que podia e pode ser de outra maneira é já um bom começo para mais um ano de trabalho, passadas que estão as férias supostamente de descanso. Se conseguirmos ver pessoas em vez de objetos já será bom; se conseguirmos ver irmãos nessas mesmas pessoas, tanto melhor. Vamos fazer por isso e o mundo será diferente. Disto tenho a certeza. E a prová-lo está Teresa de Calcutá a percorrer as ruas e vielas daquela cidade indiana, fazendo-se irmã e mãe dos desvalidos e abandonados da sociedade e que o Papa Francismo canonizou neste Domingo, dia 4. Vale a pena ler o livrinho de Roberto Todosegri “A Mãe de Calcutá, Madre Teresa”, publicado recentemente pelo AO.

 

A. da Costa Silva, sj

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