Neste mês, depois do costumado tempo de férias, recomeça o ritmo normal nas escolas, nos empregos, na vida familiar e nas atividades da Igreja. Também cada dia, vencida a escuridão da noite, somos desafiados a recomeçar uma nova etapa, com alma e coração renovados.
Sabemos que é preciso ultrapassar obstáculos para viver o ideal bíblico: “Este é o dia que o Senhor fez: exultemos e cantemos de alegria” (Sl 118, 24). Cada dia é único. Uma estreia mundial. Nunca ninguém em todo o mundo viveu o dia de hoje. Urge sacudir a rotina, a monotonia das repetições maquinais, sem alma. Há que dizer não a subjugar-nos ao “mais do mesmo”, somando dias, numa contabilidade sem qualidade amorosa.
Um notável romancista inglês do século XX, Chesterton, assim observa: Todos os dias, ao acordarmos pela manhã, deveríamos ficar maravilhados por encontrarmos dois pés para pormos nos nossos sapatos. É uma experiência repetidamente quotidiana e, no entanto, maravilhosa: estamos vivos! Um novo dia nos visita para amarmos e nos deixarmos amar!
Sair de mim, para ser mais eu
Para recomeçarmos cada dia com novo vigor e frescura, importa cair na conta de que somos criados à imagem e semelhança de Deus. E Deus é plural, trinitário, família amorosíssima do Pai e do Filho e do Espírito Santo que se expandiu na criação, particularmente da obra-prima que somos nós, mulheres e homens, com uma identidade que espelha Deus. Temos o ADN divino do altruísmo, do êxodo de nós próprios em favor da terra prometida da vida de quem nos rodeia e precisa de nós.
O egoísmo, a centração em nós próprios é uma heresia antitrinitária, que devemos catolicamente evitar. Os outros são parte de mim, como eu sou parte de Deus. Inclusividade maravilhosa. Quem é mais rico ao jeito de Deus é aquele que mais se dá, capaz de amar até quem não é amável. Assim nos recordava o Papa Francisco, alguns meses antes de partir para Deus amor: “Existe um amor maior, um amor que vem de Deus e se dirige a Deus, que nos permite amar a Deus, tornando-nos seus amigos, e nos concede amar o próximo como Deus o ama, com o desejo de partilhar a amizade com Deus. Por causa de Cristo, este amor impele-nos para onde humanamente não iríamos: trata-se do amor pelos pobres, pelo que não é amável, por quem não nos ama e não nos é grato. É o amor pelo que ninguém amaria; até pelo inimigo. Até pelo inimigo. Isto é ‘teologal’, vem de Deus, é obra do Espírito Santo em nós”.
O genial Santo Agostinho, nosso ‘contemporâneo’ de há dezasseis séculos, clarividente, afirma: “Eu sou eu, mas não sou meu”. A todos é recomendável ter uma identidade forte. Mas não fechada no ‘campo de concentração do eu’. Uma identidade não possessiva, em que ser significa amar e servir.
Recomeçar é um verbo a conjugar não possessivamente, mas de portas e janelas abertas para todos os que fazem parte da nossa vida. Recomeçar incluindo tudo e todos. Recomeçar, cada dia nascendo de novo.
Manuel Morujão, sj