Lembro-me como se fosse hoje. A história era habitual, o L. era um rapaz congolês de 19 anos, a viver no campo de refugiados de Moria, em Lesbos, com a sua mãe, após ambos terem sido vítimas de perseguição por parte de forças militares.
Ao entrar na consulta, mostrava-se desanimado e disse-me que vinha ali mais pela sua mãe do que por si próprio. Contou-me como a mãe ainda tinha pesadelos e lembranças das torturas a que fora submetida no seu país de origem e como isso a impedia de dormir e o deixava preocupado com o seu estado de saúde mental e física.
Expliquei-lhe que isso era algo normal, tendo em conta aquilo a que ambos tinham sido submetidos e a todo o stress inerente à travessia. Apresentei-lhe algumas estratégias para aumentar a resiliência e a capacidade de lidar com os efeitos de traumas passados, insistindo na importância de a sua mãe vir também à clínica, para que eu ou outro médico pudéssemos falar pessoalmente com ela.
Ele assentiu e quando estávamos prestes a despedir-nos disse-me: olha, eu também estudava Medicina. Interessado, procurei saber mais detalhes e fiquei a saber que o L. estava no 1º ano do curso de Medicina quando ele e a mãe tinham abandonado o seu país. No meio das respostas que foi dando às perguntas que lhe fui colocando, disse-me que gostava muito de ler.
De imediato pensei levá-lo à biblioteca improvisada do nosso centro comunitário. Ali, as pessoas podiam gratuitamente requisitar livros, tendo um prazo de duas semanas para ler, devolver e, se quisessem, levar um outro. Havia livros em várias línguas, uma delas o francês.
Quando passei os olhos pela prateleira vi que entre os livros em francês se encontrava o Le Petit Prince (O Principezinho), de Antoine de Saint-Exupery. Intuitivamente, pensei que este poderia ser um livro interessante para o L. ler. Quando lho propus, os seus olhos iluminaram-se e disse-me com algum entusiasmo que conhecia o autor mas que nunca tinha lido este livro. Nesse dia, percebi melhor o poder que um livro pode ter a alimentar sonhos.
Acabámos por requisitá-lo e L. levou o livro. Nunca mais vi L.
Pedi que, caso voltasse à clínica, lhe dessem o meu número de telefone para que me pudesse dizer o que tinha achado do livro mas, aparentemente, não voltou a aparecer. Talvez tenha aparecido e não o tenham identificado. Talvez nunca mais tenha voltado.
Tal como aconteceu com L., também perdi o rasto de muitas das pessoas com quem contactei em Tessalónica, Lesbos e Bangladesh. Resta-me relembrar-lhes o rosto e as suas histórias de vida. Resta-me rezar e esperar que um dia possamos encontrar-nos num lugar melhor. Resta-me contar as suas histórias e o modo como não desistiram de lutar por um futuro melhor. Resta-me agradecer por as poder ter conhecido.
António Lourenço