A devoção ao Coração de Jesus, apesar de estar presente na Igreja desde bastante cedo, surge com maior destaque num contexto muito particular da história e da espiritualidade cristã. Em pleno século XVII, a teologia e a espiritualidade veem-se a braços com uma dificuldade de relação e diálogo: o iluminismo. Tudo pode ser explicado através da ciência e da razão, confia-se absolutamente nos grandes sistemas científicos e filosóficos. Deste modo, tudo o que escapa a este tipo de abordagem considera-se irracional e, por isso, inexistente. No caso da religião, esta é vista como sentimentalismo e a ideia da existência de Deus é classificada como uma ilusão. Da parte da Igreja, acabou por se cair num discurso polémico com estas correntes, o que levou a falar de Deus mais como um mistério do qual se podem dar provas racionais, do que propriamente como um Deus-Pessoa que dá uma resposta mais existencial ao espaço da vida entendida no seu conjunto. A consequência disso é que Deus começa a surgir no imaginário cristão como um Deus distante, juiz, numa relação marcadamente vertical.
A história da Igreja é marcada pelas reações a determinadas ideias de Deus e modelos de Igreja que afastam o cristão da autenticidade do Evangelho. É com as revelações do Sagrado Coração de Jesus a Santa Margarida Maria Alacoque, uma monja francesa do convento da Visitação de Paray-le-Monial, acompanhada por um Santo Jesuíta, S. Cláudio de la Colombière, que se torna cada vez mais forte a ideia de que Deus é essencialmente Amor, relação, presente no mistério do Coração de Cristo.
O coração é aquilo que, na linguagem bíblica, define o núcleo central da pessoa. É no coração que se deseja, que se ama, que se centra a vontade de ter um sentido na própria vida. O Coração de Jesus centra-nos no núcleo essencial do ser de Deus, comunicação total e presença afetiva.
No tempo atual, a devoção ao Coração de Jesus é um desafio enorme ao modo como entendemos a fé e a nossa relação pessoal com Deus. Deus não Se explica através de demonstrações, mas é Aquele que indica, no seu modo de ser, um estilo de vida que vale a pena: amar até ao limite. Porque a razão não é apenas cérebro, mas inteligência da vida no seu conjunto, o Papa Bento XVI falou por diversas vezes da necessidade de alargar a razão, abrindo-a ao mistério da pessoa, que é também afetividade e, essencialmente, relação que toca o mundo humano e é capaz de o transformar.
O Coração de Jesus é o movimento interno do desejo de Deus de tomar parte na nossa vida e nos fazer verdadeiramente seus Filhos. Esta é a última vocação e o sentido da nossa vida.
António Valério, sj