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Tinha tudo e estava só

“São ricos e têm sucesso, mas sentem-se sós”, leio em cabeçalho de notícia. Fico a pensar em memórias recolhidas e ouvidas ao longo da vida. A pensar naquela pessoa amiga que tinha tudo, só não tinha saúde para desfrutar daquilo tudo; a pensar no desabafo daquele recém-formado estudante universitário, filho único de pais muito ricos (no caso um industrial), mas com vazio e solidão interiores: “Olhe, padre, tenho fortuna que chegue para a minha vida, mesmo sem ‘fazer puto’ (expressão sua), e ainda sobra para os meus filhos e netos, se os vier a ter”. Fico a pensar naquela resposta do Presidente Kennedy a quem lhe pediu opinião sobre a juventude americana do seu tempo: “Tem tudo. Só lhe falta uma coisa, mas infelizmente ‘essa coisa’ é a única importante e necessária”.

Estou a escrever estas notas em terras alentejanas, onde as lonjuras se perdem mergulhadas no silêncio e muitas vezes na solidão. Mas a frase foi pronunciada em Lisboa na recente “Web Summit” (“Uma espécie de feira de gente com ideias com gente com dinheiro”, escreveu alguém), e em entrevista naquele mundo das altas tecnologias e das inteligências artificiais a que chamam pomposamente “Startups”. Outras solidões, portanto, que não necessariamente a alentejana. E foi pronunciada por uma das altas figuras do conhecimento, da inovação e da criatividade que foram passando pelos palcos do “Altice Arena”.

Estamos de facto no mundo dos ricos e do sucesso mas que, por si, não resolvem necessariamente os problemas da solidão humana. Estamos no terreno dos algoritmos, terreno tão distante das operações simples do “somar e diminuir”, do “multiplicar e dividir” onde vive o homem comum, o homem “de carne e osso” na expressão querida de Unamuno. Aqui soma-se e diminui-se, multiplica-se e divide-se; aqui os que têm “mais” ainda vão dando aos que têm “menos” e os que sabem multiplicar ainda vão dividindo (partilhando) com os desafortunados da sorte. Aqui ainda se “divide” a herança recebida dos pais com a expressão “fazer as partilhas”; aqui ainda se diz “Divide lá isso comigo” e “Vamos dividir isto por todos”. Aqui ainda se fala dos “nossos semelhantes” com possibilidade de sermos todos irmãos e filhos do mesmo Pai. Se quisermos, claro. Ou formos capazes, evidentemente.

O Adão do livro do Génesis também tinha tudo mas estava só. Faltava-lhe alguém “semelhante a ele” para poder exclamar: “Esta é verdadeiramente osso dos meus ossos e carne da minha carne”. Faltava-lhe Eva para não continuar “só” no meio de tanta coisa e de tantas aves e tantos animais à sua volta; faltava-lhe companhia para poder “crescer” realizando-se como pessoa e para poder “multiplicar-se” construindo a sua história com novas histórias; faltava-lhe companhia para poder guardar e proteger aquele jardim que o Senhor viu ser bom e belo e lhes entregou para que o tratassem e cuidassem bem em benefício de todos. Afinal, faltava-lhe alguém com quem pudesse somar e diminuir, multiplicar e dividir. Faltava alguém “semelhante a ele” para, com esse alguém, poder ser “a imagem e semelhança de Deus” que é Amor. Tinha aparentemente tudo, só não tinha ninguém para amar e ser amado.

“Senhor, dai pão aos que têm fome e fome aos que têm pão” era a oração que o P. Américo gostava de fazer com os seus rapazes da rua. Oração que neste momento faço minha pelos ricos deste mundo (ricos por fora, mas com muito vazio por dentro), já que para os pobres, (“os pequeninos” do Evangelho) apenas peço, com a oração do Pai-Nosso, “o pão de cada dia”. Nem “mais”, nem “menos”. Chega e sobra.

A. da Costa Silva, sj

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