A música de Leonard Cohen começou a fazer-me companhia ainda na adolescência. Escutando a rádio, era surpreendido, de vez em quando, pela sonoridade profundamente melancólica daquela voz inimitável, grave como nenhuma outra. E ficava à espera da próxima vez em que a rádio me traria de novo aqueles sons únicos.
Bastante mais tarde, já no tempo dos CD, comecei a poder comprar: sem método, nem regra, um CD agora, outro depois. Comprava os CD de Leonard Cohen como comprava livros: quando podia, pelo prazer de os ter, pela alegria de os ouvir, porque começava a entender as palavras e ia descobrindo, para além do músico, um poeta extraordinário.
Leonard Cohen não juntava palavras para pendurar numa música. Cantava histórias, de amor, de perda, de solidão, mesmo quando essas histórias não rimavam com coisa nenhuma, a não ser com corações quebrados pelo passar dos anos e pelo desgaste que a vida traz. Histórias de mulheres amadas ou símbolos do amor (Suzanne, Marianne, Joan of Arc…), histórias de gente quebrada, como o mendigo nas ruas de Nova Iorque com um letreiro onde se lia Please, dont pass me by I am blind, but you can see (e uma fabulosa interpretação ao vivo, em Londres, na qual todos somos cegos e gritamos para não nos passarem ao lado!), histórias de amores românticos feitos de abandono e tristeza, porque amor rima sempre com dor…
Depois, soube que Leonard Cohen, canadiano de nascimento, era de ascendência judaica. E isso ajudou-me a reler algumas das suas poesias, tão marcadas por figuras bíblicas ou pela liturgia judaica. Leonard Cohen já não era apenas o poeta que lutava com uma humanidade quebrada, mas também um homem em luta com Deus: Jacob e o Anjo. Agora podia acompanhá-lo interiormente no seu Hallelujah, pois, por muitos erros que se cometam, há um raio de luz em cada palavra…; ou caminhar ao lado de Abraão e Isaac, até ao cimo do monte, numa das suas mais estranhas e pungentes poesias (Story of Isaac), trazendo para hoje uma das narrativas mais arrepiantes de toda a Bíblia: vós que construis agora estes altares para sacrificar estas crianças, não o façais nunca mais.
Leonard Cohen morreu a 7 de novembro, com 82 anos. No mês anterior, tinha publicado o 14º álbum. A poesia que lhe dá o título não podia ser mais elucidativa You want it darker We kill the flame. Leonard canta um mundo que escurece, a vida que se vai apagando, um Deus com O qual não pode deixar de lutar. Mas conclui: Hineni, hineni (Aqui estou, em hebraico), acrescentando: Estou pronto, meu Senhor.
Leonard Cohen terminou a sua luta com Deus. As suas palavras e a sua música continuam a acompanhar-me na minha até esse dia em que espero poder dizer adeus e entregar tudo A-Deus.
Elias Couto