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O dom das lágrimas

“Vacilas por ternura Deus omnipotente

da pedra fonte da água viva rompeste

a um povo sedento

retira da nossa dureza a compunção das lágrimas

longo pranto por nossos pecados concede

pois vendo-nos assim te compadeces

e obtemos remissão”

Talvez nos venha à memória o episódio de José, em Génesis 37-50: a venda de José como escravo pelos seus irmãos, a sua ida para o Egito, o modo como adquire a confiança do Faraó e desempenha uma função similar à de um primeiro-ministro. José converte-se, paradoxalmente, no salvador da sua família e do seu povo: quando a fome grassa no país de Jacob, este envia os filhos a comprar trigo ao Egito, encontrando-se estes, sem o reconhecerem, com José. E José chora, por não ser reconhecido.

Mais tarde, já depois de os irmãos trazerem Jacob para o Egito, José dá-se a conhecer e chora: acabou de perdoar aos seus irmãos a traição ocorrida anos antes, pois reconhece que foi graças a essa traição que o povo se libertou da fome. Tal narrativa será comum ao longo de todo o texto bíblico: não que Deus queira ou provoque o sofrimento, mas as experiências de sofrimento, desolação e angústia podem converter-se em episódios de Salvação. A Páscoa de Jesus será disso o Sinal pleno.

As lágrimas têm um lugar fundamental na nossa vida: um lugar que a sociedade ocidental tende a esconder, a guardar por detrás dos óculos escuros, dos aposentos privados ou da escuridão da noite. É muito difícil termos a sorte de ter um amigo ao nosso lado num momento de choro.

Mas o choro, seja pelo sofrimento, pelo desespero ou pela angústia, constitui um primeiro passo de libertação. José chora no momento em que se liberta do segredo e da culpa provocados pela sua venda como escravo. A sua ferida recebe, nas lágrimas, um primeiro bálsamo terapêutico. Chorar é dar um lugar ao sofrimento, é colocá-lo diante de nós, é dar-lhe um rosto: ele deixa de ser parte de nós, torna-se uma realidade que enfrentamos; tal pode ocorrer por exemplo no diálogo com uma pessoa próxima ou habilitada, num pedido de perdão ou, ao invés, num perdoar a outro.

Mas chorar pode ser também uma expressão de gratidão, de louvor e reconhecimento pela imensa fragilidade e, ao mesmo tempo, fortaleza que o bem possui, em nós e no mundo que nos envolve. Sim, apesar de tudo, a nossa vida é sobretudo fruto da Graça: antes de amarmos fomos amados, antes de perdoarmos fomos perdoados. Sim, nem tudo depende de nós, nem sempre temos de ser perfeitos, nem sempre somos fortes: graças a Deus.

A liturgia cristã tem, no património, orações belíssimas a pedir e a agradecer o dom das lágrimas. Orações que, durante a Idade Média, eram pronunciadas na celebração da Eucaristia ou em outros momentos litúrgicos. Tais orações seriam retiradas dos rituais litúrgicos com a reforma promovida pelo Concílio Vaticano II.

“Ó Deus que preferes a compaixão

por aqueles que esperam em ti

e não a ira

concede-nos chorar longamente males que fizemos

de modo que mereçamos

tua consolação como uma graça”

Talvez a Quaresma represente precisamente isto: um tempo de descoberta pessoal de todas as opressões e angústias que carregamos, em nós e naqueles que pertencem à nossa vida. De um perdão, pedido e concedido, restaurador, libertador, terapêutico. Não, a face dos cristãos não é a face da tristeza, do remorso e da acusação: a Quaresma, como todo o ano litúrgico, é um tempo permeado pela Páscoa. Só a força, paradoxalmente suave e frágil, da Páscoa poderá, dentro de nós, fazer irromper um rosto de libertação, de cura e de paz. Que esta Quaresma, com as suas águas batismais e penitenciais, nos ajude neste caminho.

“Dá-me Senhor a mim pecador a confissão

em meu coração te seja agradável

produzir inefáveis gemidos

que alcancem teus ouvidos

Dá-me a intenção

acolhe inundando-a toda de bondade

e te deleite o pedido humilde

‘digno te pareça entrar em minha alma

como seu contínuo amor’

Dá-me Senhor as lágrimas de todo o afecto

e os vínculos internos dos pecados se dissolvam”.

 

Texto: Rui Vasconcelos

Orações: in O Dom das Lágrimas: orações da antiga liturgia cristã, tradução de Joaquim F. Carvalho, Lisboa: 2002

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